Congresso tenta driblar interferência do governo na regulação da maconha medicinal

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Após a votação da proposta de regulação da maconha medicinal pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ser adiada, a Câmara dos Deputados avança no debate e pode aprovar um projeto de lei em 2020. Relator do texto na comissão especial sobre o tema, o deputado Luciano Ducci (PSB-PR) quer permitir o plantio e o uso medicinal da erva para patologias em que há comprovação científica, na contramão da posição do governo de Jair Bolsonaro.

Principal voz na Esplanada contra a liberação do plantio da Cannabis, o ministro Osmar Terra (Cidadania) chegou a defender o fechamento da Anvisa caso as novas regras fossem aprovadas. De acordo com o ministro, a proposta da agência é fachada para um plano de liberação do uso recreativo de todas as drogas.

Terra defende o uso de medicamento com canabidiol sintético, em desenvolvimento pela farmacêutica brasileira Prati-Donaduzzi. Além de eliminar a necessidade do plantio, o medicamento sintético não contém tetrahidrocanabidiol (THC), substância que, dependendo da quantidade, pode levar a efeitos psicoativos.

Na avaliação de Ducci, ”é uma bobagem o que Osmar Terra fala sobre plantio”. “O que se planta hoje fora das regras é tráfico”, afirmou ao HuffPost Brasil. Ele também entende que a mudança por meio da lei traz maior segurança jurídica do que por resolução da Anvisa, que poderia ser modificada com a troca de diretoria. “O caminho do Legislativo vai poder superar o que está acontecendo no âmbito político e ideológico. A discussão tem que ser técnica”, completou.

O Ministério da Saúde é contra o cultivo da Cannabis no Brasil e só concorda com o uso medicinal para o tratamento de pacientes com epilepsia que não respondem a remédios convencionais contra convulsões.

Uma das resoluções propostas pela Anvisa estabelece que o plantio deve ser restrito a empresas, feito em locais fechados e cujo acesso será controlado por portas de segurança e com uso de biometria. Também será exigida a apresentação de planos de segurança para evitar desvios, e as empresas serão alvo de inspeções periódicas.

A segunda resolução prevê que os medicamentos desenvolvidos sejam submetidos a regras específicas de análise e aprovação para registro, aval necessário para que sejam comercializados no País.

A proposta responde a demanda de pacientes brasileiros que atualmente têm acesso por meio de decisões judiciais ou por permissões da Anvisa. Desde 2017, a agência permite a produção e comercialização do Metatyl, medicamento à base de maconha, indicado para adultos com rigidez muscular excessiva relacionada à esclerose múltipla. A medicação é composta tanto pelo THC quanto pelo canabidiol (CBD).

A regulamentação também está prevista na Lei de Drogas, em vigor desde 2006, de acordo com a qual a União pode autorizar “o plantio, a cultura e a colheita” de “vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização”.

Uso medicinal da maconha no Brasil

2014: Justiça permite que a família da brasileira Anny Fischer, que sofre com síndrome rara, importe dos Estados Unidos óleo de maconha medicinal, e Anvisa passa a receber pedidos similares.

 

Conselho Federal de Medicina autoriza médicos a prescreverem o canabidiol para crianças com epilepsia e que não tenham tido sucesso em outros tratamentos.

 

2015: Anvisa retira o canabidiol da lista de substâncias proibidas e simplifica regras para sua importação.

 

2016: Após decisão judicial, Anvisa autoriza prescrição e importação de medicamentos com THC.

 

Famílias conseguem habeas corpus para plantar e extrair óleo de maconha para uso medicinal próprio.

 

2017: Anvisa aprova primeiro medicamento à base de maconha.

 

2019: Anvisa coloca em consulta pública proposta para cultivo de Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos e outra com regras de registro e pós-registro desses produtos.

Interferência na Anvisa
Em 15 de outubro, a Anvisa adiou a votação das duas propostas após pedidos de vista (mais tempo para análise) dos diretores Fernando Mendes e Antônio Barra Torres. É necessária maioria dos 5 votos para aprovar uma resolução. Apesar de o regimento estabelecer 12 de novembro como prazo máximo para retomar a discussão, nos bastidores a expectativa é de que não haja avanço.

Torres é o primeiro diretor indicado pelo governo Bolsonaro e até o início de 2020 a maioria da direção da agência será de escolha do atual presidente. O mandato de Renato Alencar Porto acaba em 12 de dezembro. Já o do diretor-presidente, William Dib, em 26 de dezembro.

Os integrantes da comissão entendem que o debate no Congresso é uma forma de evitar a influência do Executivo. “Preocupa muito a postura de interferência institucional na Anvisa anunciada pelo governo”, afirmou ao HuffPost o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), ministro da Saúde no governo de Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014.

O ataque de Osmar Terra à Anvisa também foi criticado em audiência pública na comissão especial na última terça-feira (22). “Tenho percebido um ataque às vezes mais sorrateiro, às vezes mais explícito, de certos agentes governamentais contra as instituições. Tenho visto isso acontecer também no caso da Anvisa”, disse o deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ). “Essa regulamentação não pode se inserir nessa verdadeira caça às bruxas, nesse macartismo moralista tosco e hipócrita que está prevalecendo no Brasil. Há famílias que dependente dessa regulamentação [da maconha medicinal]. É uma questão humanitária”, completou.

Deputados defendem proposta ampla
Criada em junho pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a comissão começou os debates na última semana e tem o prazo de 40 sessões para encerrar os trabalhos, o que só irá acontecer em 2020. Após essa etapa o texto vai para o plenário da Câmara e, se aprovado, para o Senado.

De acordo com o relator da proposta na Câmara, o parecer será centrado em quatro pontos: plantio, produção, pesquisa e comercialização do medicamento. Ducci afirmou que o objetivo é permitir um acesso a medicamento de qualidade que atenda à demanda dos pacientes. O deputado defende que possa ser prescrito qualquer medicamento que a Anvisa autorizar para tratar patologias. “Tem muito mimimi para uma coisa simples”, opina.

O relatório deve ir além do conteúdo do PL 399/2015, proposta base dos debates no colegiado. O texto permite apenas a comercialização de “medicamentos que contenham extratos, substratos, ou partes da planta denominada Cannabis sativa (…) desde que exista comprovação de sua eficácia terapêutica, devidamente atestada mediante laudo médico para todos os casos de indicação de seu uso.”.

Hoje, o CFM (Conselho Federal de Medicina) só reconhece o uso medicinal da erva em casos de pacientes com epilepsia refratária e menores de idade, de modo que há uma dissonância em relação à posição da Anvisa, inclusive na liberação do Metatyl. Estudos já mostram a eficácia dessa aplicação também para casos de autismo, dor crônica, mal de Parkinson e alguns tipos de câncer.

Com o avanço de evidências científicas dos benefícios da Cannabis para a saúde, têm crescido nos últimos anos decisões judiciais que permitem o cultivo ou a importação de substâncias. Segundo dados da Anvisa, mais de 7 mil pacientes conseguiram aval para importar esse tipo de produto, com base em laudos médicos.

Na avaliação do presidente da agência, a regulação é necessária para dar uma resposta a essa demanda. Ele criticou a disseminação de informações falsas sobre o tema. “Algumas pessoas desvirtuam o que a Anvisa está se propondo, que o plantio aumentaria as chances de uma convulsão de plantios não fiscalizáveis e de incentivo ao consumo da droga. Isso é balela. É só ler o projeto”, disse William Dib na audiência pública.

Quem quiser fazer o uso recreativo da Cannabis vai na esquina. Não precisa assaltar plantação de Cannabis, que às vezes nem tem THC. É mais fácil ir num boteco na esquina. Não podemos fingir que isso não é uma realidade.
William Dib, presidente da Anvisa
Questionado por deputados sobre o caráter restritivo da proposta, que não permite o cultivo por associações e indivíduos, Dib afirmou que a Anvisa não tinha poder legal para avançar no tema.

Na avaliação do ex-ministro Padilha, contudo, a agência poderia regular “todas as formas de produção para uso terapêutico dos derivados de Cannabis”. “Inclusive ela pode regulamentar essa produção artesanal, em cooperativa ou mesmo do indivíduo na casa dele”, disse. A expectativa é que o texto da comissão na Câmara contemple esse tipo de uso.

Sobre os canabinóides sintéticos defendidos por Osmar Terra, Dib afirmou que ainda há dificuldades de viabilizar essa produção e que são necessários mais estudos científicos.

Representante da ala governista na comissão da Câmara, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) é a favor do plantio, desde que haja segurança para evitar desvios. “Se conseguirem provar que tem como, sem o plantio, oferecer o custo-benefício com o valor acessível, tudo bem. Mas não acho que seja o caso. Eu quero esperar. Não vou acusar o governo. Eu sou governo. Mas o meu voto como parlamentar, independente de governo, é que seja o melhor custo-benefício e o maior número de doenças tratadas”, afirmou à reportagem.

Uso recreativo e descriminalização
Apesar de o debate na comissão da Câmara ser focado no uso medicinal, na prática, a discussão sobre o uso recreativo da maconha deve ser incluída. “Vamos debater que formas de produção para uso recreativo podem ser terapêuticas. Como define o que é uso terapêutico? Não é apenas o medicamento produzido, então esse debate precisa acontecer”, afirmou Alexandre Padilha.

O deputado é autor do PL 4565/2019, com base em proposta da comissão de juristas na Câmara que discutiu a revisão da Lei de Entorpecentes e o Sistema de Políticas Públicas sobre Drogas. O texto autoriza o uso recreativo e estabelece 30 doses como a quantidade considerada para diferenciar usuário de traficante, uma das principais críticas da atual legislação.

Em 6 de novembro, o STF (Supremo Tribunal Federal) deve retomar o julgamento da descriminalização de drogas. O relator, ministro Gilmar Mendes votou pela descriminalização do porte de qualquer droga. Já os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin defendem a mudança só para maconha.

O relator, contudo, quer evitar ampliar a polêmica e disse que não irá entrar no debate de descriminalização em geral. Ducci acredita que uma eventual liberação do Judiciário pode prejudicar os trabalhos no Legislativo porque acirraria os ânimos ao extrapolar o debate do uso medicinal.

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