Na recepção, moças de jalecos brancos. Nos balcões, tubos de vidro com líquidos coloridos, em alusão a um ambiente de laboratório científico. Na plateia, empresários. Nada ali lembrava a estrela da noite: a maconha.
No palco, porém, uma frase entregava o objetivo do evento empresarial realizado pelo Lide Futuro em agosto, em São Paulo, e patrocinado por farmacêuticas voltadas à maconha medicinal: “Cannabusiness: um mercado bilionário”.
Sem uma legislação favorável ao plantio da maconha medicinal no Brasil e mesmo diante da desaprovação do Planalto sobre a proposta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de regular o tema, há empresários otimistas e já investindo neste setor no país.
A estimativa de recursos a serem movimentados vai de R$ 1,1 bilhão a R$ 4,7 bilhões por ano, segundo estudo das empresas de dados do setor New Frontier e Green Hub.
A projeção mais entusiasta, que representa um valor equivalente a 6,5% do total do faturamento da indústria farmacêutica no país em 2017 (R$ 76 bilhões), está amparada numa estimativa de que o país tenha ao menos 3,9 milhões de pacientes que poderiam ser tratados com Cannabis.
Desde 2014, pouco mais de 4 mil doentes foram autorizados pela Anvisa a importar produtos feitos de canabinoides para o tratamento de patologias como epilepsia, transtornos de ansiedade, depressão e esclerose múltipla. As substâncias autorizadas são o canabidiol (CBD) e o tetraidrocanabinol (THC).
A importação é um processo lento e caro. A autorização tem levado até três meses e cada paciente gasta ao menos R$ 1,2 mil por mês. Até agora, só um remédio foi registrado para ser vendido no país, o Mevatyl (spray), usado para alívio de espasmos em pacientes com esclerose múltipla.
Há 40 pessoas e uma associação de pacientes de João Pessoa (Paraíba) plantando Cannabis medicinal com autorização judicial. E há centenas de outras consumindo produtos do mercado clandestino, segundo a reportagem apurou em grupos de pais nas redes sociais.
— O Brasil possui grande potencial de mercado, não só para aplicações médicas domésticas, mas também para expandir sua exportação para países incapazes de cultivar localmente — diz Giadha Aguirre de Carcer, fundadora e CEO da New Frontier Data.
Para o presidente da empresa canadense Verdemed, José Bacellar, o negócio farmacêutico da Cannabis já existe e funciona no Brasil. Tanto que há um remédio registrado.
— O que não está resolvido é o acesso à saúde. Para isso, tem que ter plantio, extração de óleo e purificação, para que os produtos se tornem baratos e acessíveis — afirma.
A empresa resolveu arriscar e, neste ano, comprou um laboratório em Vargem Grande Paulista (SP) por US$ 1 milhão. Por meio dele, deve registrar remédios no Brasil assim que sair a nova regulamentação.
A empresa tem produção própria de Cannabis na Colômbia, de onde devem sair por ano mil litros de óleo da planta. No Canadá, ela tem dois produtos similares, o CDB 100 (para síndromes epiléticas) e o nabiximol (para esclerose múltipla).
A meta da empresa é expandir os negócios na América Latina, com investimentos de US$ 80 milhões até 2022. Metade disso depende de como vai caminhar o Brasil na questão regulatória.
— Se não tiver lei de plantio de Cannabis, não tem onde gastar — diz Bacellar.
A Entourage Phytolab, de pesquisa e produção de medicamentos desenvolvidos a partir da Cannabis, é outro caso de empresa que não esperou a regulamentação da Anvisa para fazer investimentos.
Criada em 2015, em Valinhos (SP), já aportou US$ 6 milhões no desenvolvimento de tecnologias de extração e preparo de matérias-primas da Cannabis e em estudos de eficácia e toxicidade pré-clínicos (em animais).
— Tudo o que estamos fazendo hoje independe de uma nova regulamentação da Anvisa. Estamos analisando eficácia, segurança e eficiência de produção para baratear o custo — diz Caio dos Santos Abreu, CEO da Entourage Phytolab.
Segundo ele, uma parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) gerou uma eficiência de extração 15 vezes maior do que a existente no mercado, o que pode baratear em 15 vezes o tratamento final. A proposta é investir em medicamentos para epilepsia e dores crônicas.
Abreu despertou para as possibilidade terapêuticas da Cannabis quando a mãe teve câncer e usou produtos à base da planta para minimizar os efeitos da quimioterapia.
Ele fez parceria com a canadense Canopy Growth, líder mundial do setor de maconha medicinal, e obteve investimentos de US$ 700 mil. Um investidor brasileiro aportou mais US$ 2 milhões. Hoje investe US$ 4 milhões para plantar maconha no Uruguai.
A Canopy Growth, com ações na Bolsa de Nova York e avaliada em mais de R$ 50 bilhões, abriu uma filial da Spectrum Therapeutics (sua divisão dedicada aos produtos medicinais) em São Paulo em junho.
Inicialmente, pretende investir R$ 60 milhões no Brasil até 2020, mas poderá reavaliar futuros investimentos a depender da nova regulação da Anvisa, segundo Jaime Ozi, gerente da filial brasileira. Por ora, tem promovido cursos e atividades para médicos e profissionais da saúde e associações de pacientes.
Embora o Brasil seja considerado promissor, foi a Colômbia que abocanhou a maior parte dos US$ 150 milhões da Canopy destinados à América Latina até 2020. Ficou com US$ 100 milhões para plantio e fabricação de produtos.
A empresa conta com atividades também no Chile e no Peru. No Canadá, há 11 estudos clínicos em andamento.
Como forma de simplificar o uso dos produtos à base de Cannabis, a empresa usa um código de cores: o amarelo é puro CDB, o azul contém 50% CBD e 50% THC e o vermelho, 97% de THC.
Para dor crônica, o indicado é o azul. O vermelho é prescrito para náuseas após quimioterapia.
— Cada paciente é um paciente e pode reagir de formas diferentes. Por isso, o tratamento é personalizado. O lema é começar devagar e seguir devagar para ver como ele reage e ir ajustando as doses — afirma Jaime Ozi.
A Fluent Cannabis Care, maior empresa de Cannabis da Flórida, está há dois anos no país, já investiu R$ 10 milhões em logística para a importação de produtos e aguarda, sem muita esperança, a regulação do plantio.
— Tínhamos parcerias acertadas, tudo pronto para montar fábrica, mas paramos tudo — diz o CEO da Fuent Mario Grieco, que já dirigiu farmacêuticas como a Bristol e a Pfizer.
Segundo ele, se fossem fabricados no Brasil óleos à base de Cannabis, os produtos custariam entre R$ 60 (plantio ao ar livre) e R$ 160 (se o cultivo for em estufas).
— Me admira muito a ignorância de políticos e órgãos governamentais. O mundo inteiro está avançando, cultivando, a nossa agricultura poderia lucrar imensamente, e a gente segue proibindo o cultivo por questões ideológicas.
Tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto os ministros Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Osmar Terra (Cidadania) já se posicionaram contra o plantio de maconha no Brasil para a produção de medicamentos e realização de pesquisas.
A empresa GreenCare também aposta que não haverá liberação do cultivo de Cannabis, mas acredita que o registro de medicamentos será facilitado.
— Apesar de não ser o que parte da indústria desejava, foca no que é mais relevante: a ampliação do acesso a um produto de qualidade farmacêutica para as famílias que dele dependem para a melhora de suas qualidades de vida —diz o CEO Martim Prado Mattos
Fonte: Gaúcha ZH