Melissa Sayon tinha 20 anos quando foi diagnosticada com tremor essencial. Na época, diante das alternativas de tratamento escassas e invasivas, ela decidiu conviver com o distúrbio que afetava, sem grande frequência, suas mãos e cabeça. Com o passar do tempo, no entanto, o problema ganhou ares crônicos. E começou a trazer dificuldades e constrangimentos ao dia a dia da empresária do setor de comunicação.
O alívio demorou a chegar. E veio de longe. Hoje, aos 43 anos, ela tem sempre à mão um remédio importado, à base de cannabis. “O tratamento mudou a minha vida, mas tudo ainda é burocrático e elitizado”, diz, referindo-se ao processo para comprar o medicamento, que leva, em média, 45 dias e custa R$ 800 por mês. “É um crime limitar o acesso ou privar as pessoas de uma opção mais barata.”
Assim como Melissa, a cada dia, mais e mais brasileiros enxergam na cannabis medicinal a possibilidade de atenuar os sintomas de uma ampla gama de doenças. Mas esbarram na ausência de uma legislação específica para regulamentar esse segmento.
Hoje, o acesso no País é restrito às importações, que podem ser feitas apenas por pacientes, com prescrição médica, em um processo caro e que pode durar até 60 dias. Indicado para o tratamento de esclerose múltipla, o Mevatyl, produzido pela britânica GW Pharmaceutical, é o único medicamento registrado no Brasil e vendido nas farmácias locais.
O tema está no centro de uma série de projetos de lei em tramitação no Congresso. E foi alvo de duas consultas públicas abertas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em junho deste ano, que tratavam do registro de medicamentos e do plantio e produção local. As propostas foram levadas à votação em outubro. Mas, desde então, o processo foi adiado em duas oportunidades.
“O Brasil está simplesmente sendo Brasil. Seguimos fazendo o que sabemos fazer bem, que é investir no atraso”, diz Caroline Heinz, vice-presidente da HempMeds no Brasil. Com uma linha de 17 medicamentos, a empresa é uma das pioneiras locais do segmento e chegou ao País em 2014. Naquele ano, a companhia foi a primeira a receber autorização da Anvisa para a importação.
A empresa é o braço farmacêutico da americana Medical Marijuana, que mantém diversos negócios relacionados à cannabis, entre eles, cosméticos, suplementos, roupas e produtos para pets. Com capital aberto desde 2009, o grupo tem um valor de mercado de US$ 221 milhões.
A HempMeds é também um dos principais nomes de um setor que ganhou força nos últimos anos, a partir de uma série de estudos que comprovam a eficácia das aplicações medicinais da cannabis e da chancela de entidades como a Organização Mundial da Saúde.
Hoje, a planta e seus princípios ativos já são usados no tratamento de doenças e distúrbios como Alzheimer, Parkinson, epilepsia, autismo e dores crônicas. Outra aplicação é a redução dos efeitos causados por sessões de quimioterapia.
Potencial bilionário
Na esteira dos benefícios já comprovados aos pacientes, a cannabis com fins terapêuticos começa a mostrar seu potencial também como negócio. Nos Estados Unidos, por exemplo, o setor já movimenta US$ 10 bilhões por ano e emprega 300 mil pessoas, segundo a consultoria Whitney Economics.
Um relatório do Banco Montreal, que inclui na conta outros produtos derivados e o uso recreativo legalizado, estima que o mercado global da cannabis gerará uma receita de US$ 194 bilhões em 2026. A projeção leva em conta apenas o número atual de 40 países com regulamentação específica para essas finalidades.
No Brasil, uma pesquisa das consultorias Green Hub e New Frontier estima que a cannabis medicinal tem o potencial de atender 3,4 milhões de pacientes passados os três primeiros anos de venda regularizada de medicamentos. No fim desse período, o setor movimentaria até R$ 4,7 bilhões no País.
Essas cifras têm atraído o interesse de diversas empresas do segmento. Levando-se em conta apenas os planos divulgados publicamente, os investimentos locais já realizados e projetados ultrapassam o montante de R$ 440 milhões.
Entre as empresas que desembarcaram recentemente no País estão a americana Fluent Cannabis Care, comandada por Mario Grieco, ex-CEO da Monsanto e da Bristol Myers Squibb; a canadense Verdemed, fundada pelo brasileiro José Bacellar, ex-CEO da Bombril; e a Spectrum Therapeutics, braço medicinal da também canadense Canopy Growth, um dos principais grupos na indústria global de cannabis.
Boa parte desses aportes segue, no entanto, represada, à espera da regulamentação. E essa indefinição também traz reflexos para quem está aqui há mais tempo. “O Brasil insiste em ignorar os benefícios para a saúde pública e também o potencial econômico e de geração de empregos”, diz Caroline. “Isso gera frustração e impaciência entre os investidores.”
Ela destaca os marcos regulatórios em diversos países, inclusive na América Latina. E aponta outros avanços relacionados a essa indústria. “Em países como Estados Unidos e China, o uso não é mais restrito à medicina. A cannabis está sendo aplicada em frentes como combustível, indústria têxtil e na construção civil.”
Barreiras
Para a executiva, dois fatores em especial, vêm sustentando a indefinição desse cenário. O primeiro deles é o lobby por parte de representantes da indústria tradicional a favor dos medicamentos à base de cannabis sintética, que ainda estão em fase inicial de estudos. A tese é encampada pelos ministros da Cidadania, Osmar Terra, e da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.
O segundo componente é o posicionamento contrário do próprio governo federal. Essa postura estaria sendo traduzida em uma estratégia para adiar a votação das propostas na Anvisa até o fim do mandato de William Dib, presidente da agência, que já se mostrou favorável à regulamentação.
Dib deixa o cargo em dezembro e será substituído pelo militar Antonio Barra Torres, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro. Nomeado como diretor da agência em julho desse ano, Torres foi um dos membros que pediu vistas às duas resoluções relacionadas à cannabis medicinal, adiando a votação do tema. Procurada, a Anvisa não concedeu entrevista.
“Nós já sabíamos do teatro que ia ser feito. Eles vão empurrar com a barriga até o fim do mandato”, diz Caroline, que destaca outro elemento desfavorável nesse processo. “O discurso dos governantes têm o objetivo de confundir a população.”
Combater a desinformação é, de fato, um dos desafios dessa indústria. A cannabis tem mais de 120 princípios ativos, sendo os mais estudados e conhecidos para fins medicinais o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabinol (THC). Esse último é o responsável pelo efeito psicoativo da planta.
Encontrados especialmente na maconha, os efeitos psicoativos são justamente o principal argumento usado por quem se opõe à cannabis com fins terapêuticos. Esses medicamentos, no entanto, são derivados do cânhamo, uma variação da planta cujas concentrações de THC são inferiores a 0,3%.
Para lidar com esse desafio, um dos focos da HempMeds desde a sua chegada no Brasil é a educação, uma estratégia que passa por frentes como os cursos voltados à classe médica, em que também há resistência ao tema entre os representantes mais tradicionais.
Ao mesmo tempo, a empresa tem dedicado boa parte dos seus esforços à articulação política. Desde 2018, a equipe visitou cada gabinete da Câmara dos Deputados e do Senado para explicar aos parlamentares todas as questões relacionadas a essa indústria.
Nesse contexto, a empresa encontrou apoio inclusive entre aliados do governo. Ex-comandante do exército e atual assessor do Gabinete de Segurança Institucional, o general Eduardo Villas Boas, que sofre de uma doença neuromotora degenerativa, já defendeu, em diversas oportunidades, o uso desses medicamentos.
Apesar do contexto ainda conturbado, a HempMeds já colhe alguns resultados no País. Nos últimos três anos, as vendas locais cresceram 70%. E o número de pacientes cresceu 60%.
À espera de um cenário mais favorável, a empresa segue consolidando sua operação no Brasil. No fim de 2018, a companhia inaugurou seu escritório local, em São Paulo. Até então, os negócios eram tocados a partir da sede do grupo, em San Diego, na Califórnia.
Uma das prioridades para 2020 é investir em pesquisas locais, que reforcem a eficácia dos medicamentos. “Estamos nos aproximando da comunidade científica de instituições como Unicamp, USP e Unifesp para conduzir esses estudos”, diz Matheus Patelli, gerente de operações e de marketing da empresa no Brasil.
A companhia não revela os investimentos já realizados no País e os aportes previstos com a definição de uma regulamentação. Caso esse segundo cenário se concretize, o plano, inicialmente, é obter o registro do portfólio e estruturar a produção local de medicamentos.
Apesar de não descartado, o cultivo da planta, no entanto, não estaria incluído em um primeiro momento, já que isso demandaria uma série de estudos para analisar a adaptação às condições do País. Hoje, essa etapa é realizada em fazendas próprias e de terceiros na Polônia, na Holanda e nos Estados Unidos.
“O grupo tem planos de trazer outras divisões para cá. Mas tudo depende da legislação”, afirma Caroline. “Estamos perdendo uma grande oportunidade. O potencial é gigante. E o timing é agora.”