Neste trabalho não tratarei da questão relativa à descriminalização das drogas, matéria, inclusive, judicializada por meio do Recurso Extraordinário nº. 635659, com julgamento previsto para o dia 06 de novembro deste ano. Procuro agora um caminho para mais além – um avanço, eu diria – ao menos para que o debate fuja um pouco do lugar-comum, ainda mais que, ao que parece, a posição da Suprema Corte, ainda que contramajoritariamente, será pela descriminalização do porte da maconha para consumo próprio (o que, convenhamos, é muito pouco!).
Creio ser preciso levar o debate adiante, no sentido mesmo da legalização das drogas, de toda e qualquer droga, e não somente do porte e do consumo, mas da produção e do comércio.
Algumas razões levaram-me, após longa reflexão e alguns erros de avaliação, a concluir por essa opção e pela insuficiência da mera descriminalização. Sinteticamente, procurarei expor o que penso a respeito.
Em primeiro lugar, parto da premissa de que a partir do instante em que a produção e o comércio de drogas passem a ser regulamentados, controlados e fiscalizados pelo Estado, a tendência será a eliminação gradativa do mercado ilegal do tráfico (seja a produção, seja o comércio). Transferindo-se este rendoso mercado de bilhões de dólares para o Estado e retirando-o das mãos do crime organizado, ficará este órfão, forçando-o a deixar este tipo de ilícito, extremamente violento. O Estado passaria, então, a regular o mercado, controlando as vendas, a produção, a propaganda, os locais de consumo, etc.
Com a eliminação, ainda que a médio prazo, do tráfico ilícito, haveria induvidosamente uma diminuição vertiginosa da prática de outros delitos conexos, pois muitos usuários ou dependentes (é preciso fazer esta distinção) furtam, roubam e até matam para conseguirem a droga ilícita, vendida a preços mais caros no mercado clandestino.
Ademais, sendo enorme a procura por drogas ilícitas e o mercado sem nenhuma regulação estatal, a tendência é que o valor da droga (nem sempre de boa qualidade) seja alto, o que leva o consumidor a praticar crimes para conseguir dinheiro, a fim de sustentar o seu vício (no caso dos dependentes químicos). É possível que a regulação do comércio, além de garantir produtos sem impurezas e, portanto, menos nocivos à saúde, estabelecesse preços mais baixos para as drogas em geral. É o que ocorre, por exemplo, com o tabaco e o álcool, cujos usuários (dependentes químicos ou não) não precisam recorrer ao furto ou ao roubo para consumirem a droga lícita.
Ao assumir esta responsabilidade, o Estado passaria, consequentemente, a se comprometer em prestar todos os esclarecimentos à população acerca dos efeitos do uso de drogas, como hoje é feito com as referidas drogas lícitas. Ao contrário, com a atual política proibicionista[1], dificulta-se enormemente que adolescentes e jovens tenham acesso a informações corretas e científicas sobre o assunto. Ignorantes, o risco para estas pessoas é muito maior. Para eles, a aflição é terrível, e o sofrimento para a família, devastador.
Nesta questão, a informação séria e a boa educação são fundamentais. O respeitado neurocientista americano, da Universidade Columbia, Carl Hart, crítico veemente da política antidrogas de seu País, adverte que “nossas políticas para drogas se baseiam, em grande parte, em ficção e desconhecimento. A farmacologia – ou, em outras palavras, os reais efeitos das drogas – já não desempenha papel tão relevante quando se estabelecem essas políticas.“[2]
Também não se pode negar, pelo menos na minha visão, que o proibicionismo leva à marginalização e à estigmatização do usuário ou dependente, dificultando (e até impedindo) que o sistema público de saúde chegue até ele, facilitando a proliferação de doenças, especialmente entre os usuários de drogas injetáveis. Aqui, muito mais eficaz, é uma política realmente séria de redução de danos. A propósito, “los llamados Programas de Reducción de Riesgos son, y han sido, el marco de los diversos planteamientos y programas de atuación que en estas últimas décadas han pretendido dar una respuesta a las diferentes problemáticas asociables a las formas de uso de ciertas drogas, a las patologías concomitantes y a las conductas de riesgo. La reducción de daños se há convertido en la alternativa a los enfoques basados en la abstinencia y centrados en un modelo punitivo, sea por el paternalismo médico sea por la aplicación de la ley.“[3]
É preciso também refletir exatamente a quem interessa efetivamente a proibição das drogas. Como disse acima, o mercado de drogas ilegais envolve bilhões de dólares por ano. Será que esta política de combate às drogas não serve para que alguns Países continuem a estabelecer uma relação de domínio absoluto sobre outros Estados, especialmente aqueles periféricos, produtores da droga? Parece-me que, com a legalização, o dinheiro que hoje vai para estes Países (que vendem armas e tecnologia bélica e de inteligência a propósito de combater o narcotráfico) ficaria naquele próprio País, a partir da cobrança de impostos, por exemplo.
A atual política criminal de drogas, liderada estrategicamente pelos Estados Unidos, comprova o seu próprio fracasso, com a superpopulação carcerária e um processo crescente de criminalização da pobreza. Aquele país, sem dúvidas, foi o “generador y promotor del movimiento antidroga y del discurso respectivo, y porque se há colocado siempre a la vanguardia de ´la lucha contra los demonios del tráfico internacional de drogas`“[4]
Um outro aspecto relevante sobre o tema é o jurídico. Definitivamente, quem consome drogas não afeta a saúde de outrem, mas a sua própria (quando afeta…). Ora, em um Estado Democrático de Direito não é possível punir uma conduta que não atinja terceiros, razão pela qual não se pune a autolesão ou a tentativa de suicídio, estando tais condutas inseridas dentro da esfera de privacidade e de autonomia do sujeito, sendo, portanto, ilegítima a intervenção do Direito, seja para criminalizar, seja para tornar ilegal a produção, o consumo e o comércio das drogas.
Nós que atuamos no sistema jurídico precisamos enxergar para além do Direito. A pessoa, ao longo da vida, depara-se com graves questões existenciais e adversidades próprias da existência humana, levando-a a tentar suprir a sua incapacidade de enfrentar tais questões com o uso de drogas, que é um dos meios para se chegar à “felicidade plena”, sem dúvidas. Ora, como pode o Estado punir esta busca, ainda que possa ser uma procura vã? É preciso que se respeite a opção individual e as escolhas de cada qual, desde que tais opções e escolhas não venham a atingir outrem.
Como escreveu Freud, “existem muitos caminhos que podem levar à felicidade, tal como é acessível ao ser humano, mas nenhum que a ela conduza seguramente.” Um deles é a droga: “Mas os métodos mais interessantes para prevenir o sofrimento são aqueles que tentam influir no próprio organismo. Pois todo sofrimento é apenas sensação, existe somente na medida em que o sentimos, e nós o sentimos em virtude de certos arranjos de nosso organismo. O método mais cru, mas também mais eficaz de exercer tal influência é o químico, a intoxicação. Não creio que alguém penetre inteiramente no seu mecanismo, mas é fato que há substâncias de fora do corpo que, uma vez presentes no sangue e nos tecidos, produzem em nós sensações imediatas de prazer, e também mudam de tal forma as condições de nossa sensibilidade, que nos sentimos incapazes de acolher impulsos desprazerosos. Os dois efeitos não só acontecem ao mesmo tempo, como parecem intimamente ligados.“[5]
O sociólogo argentino Alberto Calabrese nota que em relação ao usuário das drogas, o “primer contacto tiene que ver con el placer. No consume pensando que va a consumir para que le haga mal. Decide consumir eso porque cree que le va a hacer bien o le va a dar placer. Que después se equivoque porque él tiene una relación distorsionada con ese objeto o sustancia, es otra historia. Pero lo primero que va a buscar es sustentar el placer.”[6]
Aqui uma pergunta: por que não se proíbe o uso de bebida alcoólica ou do tabaco, drogas comprovadamente danosas para a saúde quando usadas de maneira exagerada? A propósito, e como se sabe, quando os Estados Unidos proibiram o consumo do álcool (período conhecido como o da Lei Seca[7]), o aumento da criminalidade urbana foi assustador, especialmente com o surgimento das grandes organizações criminosas.
É preciso que fiquemos atentos para os chamados “empresarios de la moral“, uma espécie de “mediador entre los sentimientos públicos y la creación de la ley“, e, principalmente, para os “empresarios de la represión, ejemplificados en los cuerpos de seguridad que se ocupan de implementar la política criminal.“[8]
O proibicionismo só atrai ainda mais as pessoas (principalmente as mais jovens) para o consumo que, por sua vez, sendo ilegal, leva os usuários a uma situação de marginalização e de estigmatização, inserindo-os no sistema prisional que, como é notório, longe de ressocializar, criminaliza e violenta ainda mais. É um verdadeiro círculo vicioso. A questão das drogas não pode ser resolvida pelo sistema de justiça criminal e pelas agências punitivas: Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário. Outros atores devem ser chamados: assistentes sociais, pedagogos, médicos, psicólogos, família, igrejas, escolas, etc. A legalização, enfim, teria este outro efeito positivo: a descarcerização.
Acho muito pertinente esta consideração de Maria Lúcia Karam: “Talvez o caminho seja mais árduo. A fantasia é sempre mais fácil e mais cômoda. Com certeza é mais simples para os pais de um menino drogado culpar o fantasma do traficante, que supostamente induziu seu filho ao vício, do que perceber e tratar dos conflitos familiares latentes que, mais provavelmente, motivaram o vício. Como, certamente, é mais simples para a sociedade permitir a desapropriação do conflito e transferi-lo para o Estado, esperando a enganosamente salvadora intervenção do sistema penal.“[9]
Para concluir, faço uma pergunta primeira: a proibição tem surtido algum efeito positivo, sob algum aspecto? E tem gerado efeitos negativos? Vamos, então, refletir sobre tais consequências e avaliar se não é chegada a hora de procurarmos uma política alternativa, uma terceira via, ao menos mais democrática, mais racional, mais humana e mais eficaz.
Depois, valho-me da palavra de Freud, ainda que em outro contexto:
“Em nosso país existe, desde sempre, um verdadeiro furor prohibendi (mania de proibição), uma inclinação a tutelar, intervir e proibir que, como sabemos, não trouxe exatamente bons frutos. Pode-se observar isto: onde há poucas proibições, elas são cuidadosamente respeitadas; onde o indivíduo depara-se com proibições a todo momento, sente praticamente a tentação de ignorá-las. E não é preciso ser um anarquista para ver que leis e regulamentos não podem, por sua origem, ter um caráter de santidade e inviolabilidade, que muitas vezes são deficientes no conteúdo e ofensivos ao nosso sentimento de justiça, ou assim se tornam após algum tempo, e que, dada a vagareza das pessoas que dirigem a sociedade, frequentemente não há outro meio de corrigir tais leis inadequadas senão infringi-las resolutamente. Também é aconselhável, quando se quer que seja mantido o respeito às leis e regulamentos, não promulgar nenhuma cuja obediência ou inobservância seja difícil de controlar.”[10]
Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
Fonte: GGN – Jornal de Todos os Brasis