Opinião DENIS RUSSO BURGIERMAN | HÁ UMA ASSOCIAÇÃO ESTATÍSTICA ENTRE USO PESADO DE MACONHA DE ALTA POTÊNCIA E CRISES PSICÓTICAS

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Já se atribuiu muita coisa horrível à maconha: mortandade de neurônios e de espermatozóides, indução ao homicídio e ao suicídio, a transformação em zumbi. Sem falar na tese de que a maconha é, no fundo, a culpada por toda a desgraça atribuída à heroína, ao crack, às anfetaminas, já que ela seria uma metafórica porta de entrada para as outras drogas.

Mas, nos últimos anos, uma a uma, essas acusações foram caindo: os cientistas testaram cada uma dessas teses e chegaram à conclusão de que nenhuma delas é verdadeira (embora evidentemente haja, sim, certos riscos ligados a certos usos de certos tipos de maconha).

Mas nunca, ao longo do último século, deixou de haver uma história de horror propagada pela classe médica e pela imprensa popular que tivesse a maconha como vilão. Hoje essa história é sobre esquizofrenia. Maconha causa esquizofrenia, diz-se por aí.

Esquizofrenia é uma condição crônica, de tratamento muito difícil, caracterizada por uma psicose recorrente ou permanente. E psicose é um estado no qual a pessoa perde contato com a realidade. Tem muita gente dizendo que maconha causa psicose e que, em alguns casos, ela pode dar origem a uma esquizofrenia crônica, talvez incurável.

A tese é assustadora, e merece ser investigada com atenção. Quando se faz isso, o que fica evidente é que, como costuma ser o caso, a verdade é bem mais complexa do que sugere a história de terror.

De fato, e sem dúvida, há uma relação estatística entre ocorrência de surtos psicóticos — chegando a quadros de esquizofrenia — e uso pesado de maconha de alta potência. Por muito tempo, no entanto, foi difícil interpretar esses números.

Até que, alguns meses atrás, a epidemiologista britânica Suzanne Gage mergulhou nos números e publicou um artigo bem sólido na principal revista de medicina do mundo, The Lancet, que ela batizou de “Cannabis e psicose: triangulando a evidência” (na minha tradução).

Gage confirmou que parece ser verdade que esquizofrênicos crônicos e pessoas que sofrem surtos de psicose têm mesmo mais chances de serem usuárias crônicas e pesadas de maconha de alta potência — gente que fuma todo dia maconha com altos índices de THC. Só que isso não quer dizer que maconha cause esquizofrenia.

A epidemiologista demonstrou que os números indicam o contrário: pessoas sujeitas ter surtos psicóticos ou desenvolver esquizofrenia buscam maconha mais do que a média da população.

Uma possível explicação para isso faz todo sentido diante do que se está descobrindo sobre o sistema endocanabinóide: que ele é um sistema voltado ao equilíbrio do corpo, a desacelerar processos que estão fora de controle.

Talvez as pessoas propensas a ter surtos psicóticos e a desenvolver esquizofrenia tenham já um desequilíbrio que eles intuitivamente tentam modular estimulando o sistema endocanabinóide constantemente com maconha, o que leva a um uso excessivo.

O problema é que hoje em dia há no mercado ilegal variedades de maconha com índice muito alto de THC, graças a gerações e gerações de cruzamentos que buscam maximizar a potência, feitos por produtores que abastecem o tráfico. E THC tem mesmo um potencial psicótico, associado a seu poder de, em doses muito altas, aumentar a ansiedade. THC em excesso talvez seja especialmente perigoso para jovens, com o cérebro em formação.

O neurocientista Sidarta Ribeiro, da UFRN, especula que isso talvez tenha relação com o potencial neurogenerativo do sistema endocanabinóide: ele faz nascer neurônios novos. Ganhar neurônios é uma maravilha para idosos, que estão perdendo os seus, mas pode ser um perigo para cérebros imaturos, adolescentes, que estão em fase de “poda neuronal” — a supressão de sinapses não utilizadas.

Só que maconha não é só THC. É também CBD, que é uma substância que, nesse aspecto, age na contramão do THC. CBD protege contra psicose — reduz a chance de surtos. Aliás, vai além disso: há evidências bem fortes de que CBD é um remédio anti-psicótico: de que ele, em combinação com um pouco de THC, é, na verdade, um ótimo tratamento para melhorar o estado de esquizofrênicos.

Em outras palavras, talvez maconha, ao mesmo tempo que é um fator de risco para esquizofrenia, seja também o melhor remédio que conhecemos para tratar esquizofrenia. A questão aí vai um pouco mais fundo do que gostam as autoridades médicas e a imprensa popular. Torna-se preciso perguntar: qual maconha?

A maconha do tráfico, produzida sem fiscalização, com o incentivo único de concentrar potência para reduzir volumes no transporte, sem nenhum controle sobre a presença ou não do protetor CBD, parece mesmo envolver riscos. A questão é como reduzir esses riscos.

Um jeito poderia ser regulamentar o mercado e obrigar todos os vendedores a rotular seus produtos, especificando quanto THC e CBD tem lá dentro. Ficaria bem mais fácil negar variedades com THC demais e CBD de menos para grupos de risco, como os mais jovens, cujos cérebros ainda não estão totalmente maduros. Países que estão buscando regimes mais regulados têm conseguido diminuir a venda para menores de idade, o que seria um belo avanço para reduzir danos.

Dizer que maconha causa esquizofrenia é tão impreciso quanto dizer que maconha é a cura da esquizofrenia. A verdade está no meio. Esquizofrenia — e outras psicoses — parece ser uma condição ligada ao sistema endocanabinóide. A piora e a melhora dessa condição está intimamente ligadas à forma como escolhermos tratar nossos receptores endocanabinóides. Fingir que a maconha não existe, como querem alguns órgão classistas dos médicos, não vai ajudar — e pode atrapalhar bem.

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