Tratamento com cannabis não é a cura nem solução para tudo que a medicina convencional não consegue tratar, mas pode mudar vidas. A neurologista pediátrica israelense Orit Stolar vê isso acontecer todos os dias no Centro Médico Assaf Harofeh, em Israel. Ela dirige o Programa de Intervenção Precoce “Alutaf”, um projeto combinado entre o hospital em que trabalha e a Associação Nacional Israelense para crianças com autismo (Alut). Cética no passado em relação ao uso medicinal do extrato de cannabis (no Brasil, o óleo é conhecido como canabidiol), hoje Orit enumera vários avanços em redução de raiva, ansiedade e hiperatividade, além de melhora do sono e integração social em pacientes com autismo que usam o extrato.
Em conversa com o GLOBO em São Paulo, onde participou do 1º Congresso Internacional de Medicina Canabinoide (CannX), a neurologista israelense diz que o estudo continuado sobre o extrato de cannabis pode, ainda, ajudar em novas descobertas sobre o autismo.
Qual é a visão no meio médico sobre os benefícios do extrato de cannabis para pacientes?
O extrato de cannabis tem um grande potencial de fazer o bem. Ninguém dizia claramente isso há alguns anos. Diziam que era só uma moda, que ali não havia nada. Mas mergulhei nisso nos últimos cinco anos por causa dos pacientes. E passamos por altos e baixos. Estou aprendendo com eles. O que vejo é que há histórias incríveis que só são possíveis por causa do extrato de cannabis, quando medicamentos convencionais não conseguiram. Mas não é 100% exitoso. Tenho pacientes que usaram e foi um sucesso. Com outros, foi um desastre. Depende dos pacientes e do que se está dando. Há um tempo de ajuste até chegar ao princípio ativo ideal, se é CBD, ou THC, e em que dosagens? Também há diferenças entre fornecedores. Não é simples.
A senhora atende crianças com autismo. Qual tem sido a maior aplicação do canabidiol no ambiente pediátrico?
Conheço casos com ótimos resultados para crianças com epilepsia, ou em tratamento quimioterápico. É apenas o começo. No caso do autismo, não significa a cura nem a solução definitiva, mas certamente ajuda nos sintomas. Ajuda a dar ferramentas para que a criança lide com suas dificuldades, se comunique melhor, esteja mais equilibrada. É um trabalho de intervenção no comportamento. Tenho um paciente com síndrome de Tourette. Tentei de tudo e não conseguia melhorar a vida dele. Ele estava mal. E eu sabia que adultos com Tourette usavam extrato de cannabis. Então decidimos tentar com ele, que tinha 14 anos na época. No início, ele piorou. Fiquei aterrorizada. Mas fomos ajustando as concentrações e cepas até que ele chegou ao melhor ponto de qualidade de vida que já teve. Ainda tem os tiques, mas está muito melhor. Tem vida social, sai com os amigos. Levou meses. Mas é um garoto diferente agora. Tive outro paciente que quebrava mesa, televisão. A mãe me mandou uma foto da casa destruída e pediu ajuda. Queria que eu aumentasse a dispiridona (tipo de antipsicótico). Indiquei o extrato de cannabis. Poucos dias depois, eles tiveram o primeiro jantar em família desde que o menino nasceu. O pai tinha medo dele, o irmão mais velho foi estudar Medicina por causa dele. Era fora de controle. É uma mudança de vida.
Como começou a incluir o canabidiol como parte do tratamento com crianças?
Nunca pensei que faria isso. Era cética, inclusive. Mas comecei a ver o efeito nos pacientes. Lembro de um paciente que era tratado com dispiridona. Era um caso difícil. Quando voltou para consulta, perguntei à mãe o que ela tinha feito. Ele estava diferente. Ela ficou quieta, porque tinha conseguido ilegalmente, mas me disse que estava dando extrato de cannabis a ele. Foi a primeira vez que acompanhei essa diferença. Uma criança que não conseguia ficar sentada na cadeira, que era muito agitada. Vamos aprendendo aos poucos. Não é um tratamento mágico. Mas tem seu lugar e pode ser oferecido aos pacientes. A medicina convencional muitas vezes tem efeitos colaterais. Se começa com um medicamento, depois adiciona outro, e outro, e de repente temos um paciente de 12 anos usando três remédios diferentes. Isso não pode ser bom.
Como é a regulamentação do canabidiol em Israel?
Estamos bem avançados nessa área. Temos uma produção nacional de cannabis para fins médicos. Existem oito fornecedores em Israel. O uso de cannabis medicinal é aprovado para o tratamento de adultos, em casos de dor, pacientes com câncer, síndrome de Tourette, estresse pós-traumático, entre outros. Com as crianças, a história é outra. Em casos de epilepsia intratável, em que se tentaram mais de quatro tipos de medicamentos sem progresso, se consegue o acesso ao canabidiol facilmente. No caso do autismo, não há uma indicação aprovada. Mas o médico pode escrever uma carta ao governo detalhando a situação, o que já foi tentado, e na maioria das vezes se consegue uma aprovação legal. Não acho ruim que a regulamentação seja acompanhada. É preciso continuar pesquisando, testando os efeitos a longo prazo. O que mais me preocupa é que as crianças não são adultos jovens. O cérebro está em constante desenvolvimento nessa idade. E sabemos que nosso corpo produz substâncias similares ao CBD ou THC, e que estão envolvidos no desenvolvimento do cérebro. Meu receio é que dar uma substância externa que trabalha com o mesmo mecanismo desenvolvido pelo corpo possa causar algum desequilíbrio ou dano. Por isso tenho reservas com o uso de canabidiol para crianças que demonstrem baixíssimos graus de autismo. Precisamos estudar continuamente para ter segurança. Tive um paciente que veio de muito longe há umas semanas. A família queria que eu prescrevesse o extrato de cannabis, e me recusei. Ele ainda era muito pequeno, precisávamos entender ainda seu grau de autismo, pensar o tratamento. A família se irritou. É que as pessoas se confundem. Cannabis não é chocolate. Precisamos ser responsáveis e levar o tema a sério.
Quais são as próximas barreiras a serem quebradas no uso de canabidiol em crianças com autismo?
Os casos que acompanho com os pacientes em Israel mostram que o extrato reduz significativamente os sintomas de hiperatividade, ansiedade, raiva e melhora o sono. São quatro boas razões para prescrever cannabis a uma criança com autismo. E novas descobertas podem surgir dessa observação. Podemos encontrar respostas olhando para dentro. Se o canabidiol ajuda no tratamento de crianças com autismo, é porque está envolvido em um processo natural do corpo. Temos estudos que mostram que o nível de anandamida, que é semelhante aos princípios ativos na cannabis, e que nosso corpo produz, são mais baixos em pacientes com autismo. Então talvez seja um biomarcador, algo a se checar, que deveríamos medir mais em pesquisas. Vemos que o CBD e o THC funcionam, mas quanto? Nosso corpo tem receptores para eles. Mas em que proporção devemos usar? Não pode ser um consumo desenfreado. Há estudos em curso em Israel que mostram que a anandamida, o CBD e o THC se conectam com os mesmos receptores no corpo e estão envolvidos em atividades de desenvolvimento do cérebro da criança, memória, entre outras. Então, se crianças com autismo possuem níveis baixos de anandamida, talvez seja preciso consertar essa “memória”, talvez estejam assim porque não têm esse “acelerador”. Espero que avancemos nisso.
Há estudos que mostram que quanto antes se inicia o uso de canabidiol melhor para uma criança com autismo?
Não conheço pesquisas nesse sentido. Os estudos sobre cannabis ainda são muito recentes. Precisamos, primeiro, identificar quais são os pacientes que podem se beneficiar desse tratamento. Depois, ver o que funciona e o que não, além das dosagens. E, principalmente, é necessário encontrar uma maneira de que pesquisadores de todas as partes do mundo falem a mesma língua. Precisamos de um sistema padronizado de extratos e componentes, para ter mais segurança em estudos sobre o que realmente funciona em cada caso e poder fazer comparações.
No Brasil, ainda há muita desinformação sobre o uso de canabidiol e, mais ainda, preconceitos e entraves para seu uso. O que podemos aprender dos exemplos de Israel?
Médicos são tipos conservadores. E muitos ainda não aceitam o uso de extrato de cannabis para autismo. Fui minoria por muito tempo. Mas aos poucos há uma adesão. Quando me perguntam algo que não sei, respondo que é preciso pesquisar mais. Tento ser responsável e não criar falsas esperanças nos pais, de que isso vai resolver todos os problemas. Mas não tenho dúvidas de que o extrato de cannabis tem seu lugar. O preconceito vem da ignorância. Precisamos educar as pessoas, fazer mais estudos. Vejo que o conhecimento e a curiosidade sobre o tema estão presentes no Brasil. O começo é sempre difícil. Conheci muitas pessoas aqui que têm filhos com autismo, que é o que as move a lutar por isso, a pressionar o governo por leis mais favoráveis. E, pela minha experiência, pais de crianças com autismo são imparáveis.
Fonte: O Globo