Cassiano Teixeira: ” A Cannabis substitui inúmeros remédios”

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Por três anos, Cassiano Teixeira viveu com medo de ser preso pelo que andava fazendo na cozinha de casa. Ali, produzia um óleo a partir da Cannabis para tratar a mãe e quem mais aparecesse pedindo ajuda. Chegou a fabricar mais de 30 garrafas por dia. Até que em janeiro de 2017 ele entrou com uma ação na Justiça para que a Abrace Esperança, situada em João Pessoa, onde vive, pudesse cultivar maconha para fins medicinais. Pela primeira vez no Brasil – e até agora única – a autorização foi concedida. Cassiano fechou uma loja e pediu demissão do emprego na prefeitura para estar todo o tempo dedicado à Abrace. Hoje, a associação atende 2.800 famílias, de todo o País, que pagam uma anuidade de R$ 350 e cerca de R$ 200 pelo óleo. No domingo passado, ele esteve em Salvador para participar de um painel sobre Medicina Cannábica durante a terceira edição da Virada Sustentável.

O ministro da Cidadania, Osmar Terra, defende que a liberação da maconha para fins medicinais “abre portas para consumo generalizado”. Como o senhor vê isso?

São equívocos, né? É mais um mito que se criou. Mas, se você observar os outros países em que há liberação, o oposto aconteceu. Houve uma diminuição do uso recreativo com o acesso por meio de uma regulamentação responsável. Com a proibição é que há o incentivo, o abuso. Acreditamos que a liberação garante a saúde pública, o benefício. O que o Osmar Terra tenta fazer é defender os próprios interesses. Ele protege as empresas que querem produzir o sintético, entendeu? [O ministro já defendeu a produção de canabidiol sintético, para eliminar a necessidade do plantio].

A defesa da Abrace é pela liberação para fins medicinais ou para todos os usos?

A Abrace é uma associação de pais, e a gente presta apoio ao uso medicinal. Há cinco anos atendemos essas famílias. Hoje são mais de 2.800.

Mas o senhor, pessoalmente, defende a liberação plena?

Acho que a planta precisa ser descriminalizada para que haja pesquisa, para que haja produção, para que haja a comercialização, seja do medicamento, seja do insumo. A planta precisa estar disponível para a indústria, para inúmeros produtos. Então, não podemos defender só uma parte da planta. Agora, o uso responsável, o uso adulto, o uso social requer que toda a estrutura regulamentar já tenha sido passada à prova, como é nos Estados Unidos. Na Califórnia, foram 20 anos para haver uso social liberado, sem prescrição médica. É um processo. A gente começa a regulamentar o uso medicinal, a produção começa, e isso vai se transformando mais à frente numa estrutura para que os órgãos possam fiscalizar, controlar. Você não pode da noite para o dia liberar, porque quem vai controlar, qual é a agência que vai ser responsável? A sorte do Brasil é que, às vezes, a gente fica para trás, como está agora, e aí pode ver o que saiu errado nos outros países e fazer melhor.

A Abrace é a única organização no Brasil que tem autorização judicial para cultivo da maconha para fins medicinais. Mas o processo ainda tramita na Justiça, a partir de um recurso da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Como é trabalhar diariamente com essa indefinição?

Por sorte, a definição vai ser agora no dia 13 de dezembro. Já está marcado. E a gente acredita que será consolidada [a autorização]. É muito difícil que um desembargador reverta uma decisão de primeira instância, principalmente uma como essa, que garante vidas. A partir dessa decisão, que consolida o mérito, vamos poder expandir. Temos uma filial em Campina Grande, onde já fazemos pesquisa, e penso em expandir também para São Paulo, para Campinas, que é onde está a central dos Correios. Gastamos muito com correio hoje. A maioria dos nossos pacientes é de São Paulo, então, vamos economizar muito, em tempo e em dinheiro.

O senhor imagina que o Brasil vai continuar precisando dessas decisões judiciais ou tem esperanças de uma mudança na legislação para breve?

A aprovação da legislação vai ser algo trabalhoso, mas é factível.

O senhor acha factível? Nós temos hoje um Congresso bastante conservador…

Acho que nunca se discutiu tanto. Estamos caminhando a passos largos para a alteração da lei de drogas, que é bem mais fácil do que aprovar uma nova lei. Então, se a gente conseguir alterar a lei de drogas e colocar o capítulo lá para uso medicinal da Cannabis, resolvemos o problema pela raiz. É uma estratégia bem mais possível de acontecer nesse cenário que a gente está vivendo, de um governo reacionário. O que me preocupa mais é como será a regulamentação, a fiscalização. Porque a Anvisa só tem 900 funcionários. Se eles não dão conta hoje dos pedidos de importação, imagina se vão dar conta de pedidos de cultivo. Vão chover pedidos. Vamos botar aí dois mil pedidos no primeiro mês. Quem é que vai autorizar? Quem é que vai fiscalizar? Quem vai conceder o alvará? As Anvisas locais? E elas estão preparadas? Então, é uma demanda muito grande.

Aqui na Bahia, a Cannab [Associação para Pesquisa e Desenvolvimento da Cannabis Medicinal no Brasil] tenta obter autorização judicial para produzir medicamentos a partir da Cannabis. Que tipo de orientação vocês costumam dar para as associações que os procuram?

A gente recebe muitos pedidos, hoje mesmo teve um. O que a gente orienta é que: 1. a associação não pode ter conflito de interesses; 2. ela tem que ser de familiares; 3. precisa ter sede própria, endereço próprio; 4. precisa cometer o crime antes, para salvar vidas, levantar as provas, e aí sim pedir ao juiz para continuar a fazer. Não pode pedir no pretérito do futuro, entendeu? Se deixaria fazer, se deixaria produzir. Porque aí o que é que o juiz vai alegar? Vocês não provaram ter capacidade técnica [de produzir]. Quando você comete o crime para salvar uma vida, tem o excludente de ilicitude.

O Conselho Federal de Medicina diz que “o uso da Cannabis ainda não possui evidências científicas consistentes que demonstrem a eficácia e segurança aos pacientes. Desse modo, a regulação do plantio e uso dessa droga coloca em risco esse grupo”. Como o senhor responde a isso?

Eles sempre foram a favor, inclusive tem uma resolução de 2015 em que apoiam o uso [a resolução, na verdade, é de 2014 e trata exclusivamente do uso para crianças e adolescentes portadores de epilepsias refratárias aos tratamentos convencionais]. A perda de apoio foi com esse novo governo. O Osmar Terra se apropriou do Conselho Federal [em maio deste ano, o CFM publicou uma nota de apoio ao ministro]. Como é que o Conselho Federal pode ser contra o uso medicinal de algo que está fazendo bem? Agora, em dezembro, vai ter eleição no conselho, e há rumores de que a nova diretora vai limpar isso.

Mas o conselho alega que não há pesquisas que garantam o uso seguro.

Sim, mas me diga uma coisa: quem vem primeiro, o ovo ou a galinha? Como é que a gente vai poder pesquisar se não pode plantar, fazer o medicamento?

No documentário Ilegal, disponível na internet, um médico fala justamente disso, o “direito à pesquisa”. Do que o senhor conhece, como andam os estudos no Brasil, hoje?

Temos uma pesquisa com 60 microcefálicos acontecendo há quase dois anos em São Luís, no Maranhão. São pacientes da Abrace. E teremos agora outra pesquisa na Universidade Federal da Paraíba com 60 autistas. Essas pesquisas são ensaios clínicos randômicos, duplo-cegos e controlados com placebo. A Abrace acabou se tornando um porto seguro para os pesquisadores. A gente faz os convênios com as universidades, o responsável pelo estudo clínico faz a demanda dele, e a gente aprovando… Também temos um convênio com a Universidade Federal de Viçosa, de Minas Gerais, que é um estudo de melhoramento, e estamos conservando com a Universidade Federal da Bahia. Ontem a gente apertou a mão, ficou de fazer um convênio para estudos clínicos com Parkinson.

Essas pesquisas, como o senhor falou, ainda estão em andamento. Novamente, qual é a garantia de que o uso é seguro, de fato?

A Cannabis é de uso milenar. Tem uma história biológica e farmacêutica. É só a gente puxar essa história que a gente percebe que não é nada novo. Ninguém está inventando a roda. Ela não tem histórico de morte pelo uso nem pelo abuso. É muito segura. Muitas pessoas falam que ela provoca perda de neurônio, mas é o contrário. O que a ciência prova é que ela provoca o renascimento de neurônios. A gente tem a comprovação disso com as crianças, que voltam a andar, a falar. A minha teoria é que quem desenhou essa planta sabia muito bem que ela podia ser mal usada. Então, um sujeito saudável que usa a Cannabis pode ficar doente. E um sujeito doente que usa a Cannabis pode ficar curado. Tanto é que as pessoas que têm Alzheimer, quando começam a usar a Cannabis, têm uma melhora na memória. E pessoas saudáveis, quando usam a Cannabis, esquecem. A propriedade da planta talvez seja essa. É meio que antagônico, entendeu? É o efeito oposto. Se você está com inapetência, você volta a ter fome. Se você tem muita fome, a Cannabis tira a fome.

Qual é o peso da indústria farmacêutica, na sua opinião, nas discussões sobre a liberação do uso medicinal da maconha?

Eles são a maior indústria. Maior do que a bélica, que a do petróleo. Então, têm muito poder. Estão preocupados porque a tendência é a queda dessa indústria. Não por causa da Cannabis em si, mas porque a Cannabis substitui inúmeros remédios. Então, eles estão querendo vir para essa indústria. Estão querendo comprar empresas, estruturas, e têm muito dinheiro para isso. Vejo com muita preocupação que o conflito de interesses, que já existe na indústria farmacêutica, migre para a Cannabis. Já tem um medicamento na farmácia, caro, R$ 2.800, o Mevatyl, que é importado da Inglaterra e só serve para uma coisa, a esclerose múltipla. Aí a mãezinha com [o filho com] epilepsia, tem os R$ 2.800, mas não pode ir à farmácia comprar, porque é só para esclerose múltipla, sabendo que pode funcionar para epilepsia…

A Abrace ainda tem muitos pacientes na fila de espera?

Não, hoje temos uma lista de chegada. A lista de espera acabou. Ficamos sem planta de maio a agosto, mais ou menos, mas agora temos estoque. Atendemos mais ou menos 200 pessoas por dia. Dessas 200, vamos dizer que 20 consigam toda a documentação e façam o cadastro. Então, são mais ou menos 100 por semana. Aí conseguimos abarcar esses 100. Aí na segunda já tem mais 200 de novo… Então, a briga é para conseguir o acesso. E para ter o acesso, é necessário ter toda a documentação.

Suas primeiras produções foram ilegais. Como começou essa história?

Morei nos Estados Unidos de 2001 a 2003. Conheci a Cannabis lá. Em 2014, minha mãe ficou doente e quando ela voltou da internação, não estava conseguindo comer, nem se levantar da cama. Aí eu decidi fazer por conta própria. Comprei 50 g de maconha do tráfico, fui para a cozinha, botei a Cannabis no azeite, mexi, aqueci, filtrei e dei uma colher para ela quando esfriou. Uma hora depois, ela se levantou, foi lavar os pratos, e depois foi para o Facebook. Já fazia mais de mês que ela não saía da cama. Ela se recuperou. Meus irmãos todos ficaram bestas. Apoiando, mas mesmo assim, com medo, porque tinham medo que eu fosse preso.

E você tinha medo?

Tinha. Aí nessa época eu disse: então vamos importar. A gente começou a importar na virada de 2014 para 2015. Consegui fazer 300 importações, ou seja, auxiliei 300 famílias a importar. Aí um recebia, o outro não, um a Anvisa prendia… Era muito estressante e caro. O dólar chegou a R$ 4. Foi aí que eu decidi fazer o óleo para os pais que não estavam conseguindo pagar. E um por um foi sucesso. Um por um chegava a notícia de que a criança estava sem crise. Comecei a ter uma produção diária, de mais ou menos 10 garrafas. Na metade de 2016, eu já estava com 30 garrafas por dia. Aí não estava mais só, já tinham quatro pessoas me ajudando. Eu me precavia pedindo muitos documentos, receita, autorização de ajuizamento. Eu já tinha registrado o CNPJ da Abrace em setembro de 2015. Eu passei 2016 juntando toda a documentação e provas. E aí em 2017, em janeiro, eu entrei com a ação. Então eu passei mais ou menos três anos ilegal.

A Abrace era na sua cozinha.

Na minha cozinha. E depois eu peguei de volta uma casa que estava alugada, que é a sede da associação.

Com o que o senhor trabalhava antes?

Eu era lojista. Fechei a loja e tive que pedir demissão do emprego que eu tinha na prefeitura. Tocar o barco e ficar full time mesmo [com a Abrace]. Hoje é 24/7. De noite, de manhã, de tarde, sábado, domingo. Não para. A minha vontade é ajudar outras associações a nascerem, porque quanto mais associações existirem, melhor para a gente. Porque estando só, a gente corre um risco maior, não tem tanta força. Tendo mais associações, vai aumentar o poder da gente de gritar e dizer que tem representação. E aí a gente vai poder acolher mais pessoas. São 55 milhões de pessoas com doenças intratáveis no Brasil. Só epilepsia, são 700 mil. Então não dá pra gente atender todo mundo. É um país muito grande.

E a sua mãe, está bem?

Mamãe está com 84 anos, dirigindo o próprio carro, e lançou seu sétimo livro. Ela é historiadora. E as amigas da idade dela estão todas doentes. E com medo de usar o óleo. O preconceito é assim. Essa mudança de paradigma leva tempo. Mas acho que já começou. Aagora vão ficar os retardatários, os médicos retardatários, os pais retardatários… Os que já estão usando, estão vivendo bem, curtindo sua família. O que a gente mais ouve é que os avós estão felizes, os tios estão felizes, os amigos estão felizes, e a vida da família foi restaurada. Quer dizer, é bom pra todo mundo.

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