Não é incomum passar em frente à banca de jornais e ver pendurada uma revista estampando na capa a folha de sete folíolos universalmente reconhecida como sendo a da maconha. Curioso, este mês, foi o nome da revista ilustrada com a folha famosa: Globo Rural . O diretor de redação da publicação, acostumado a estampar bois, café, soja e milho na capa, justificou na carta ao leitor a decisão inusitada: “Não há dúvida de que, mesmo se demorar, o Brasil vai ganhar uma nova commodity, que pelas contas dos empresários pode gerar R$ 4,7 bilhões por ano em negócios”. A conta financeira foi feita a partir da estimativa (conservadora) de que há 3,9 milhões de pacientes canábicos em potencial no país.
Isso ajuda a entender por que o deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), membro da bancada ruralista e presidente da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, propôs recentemente uma audiência pública para tratar do plantio da Cannabis para fins medicinais. A comissão aprovou a proposta por unanimidade, sem nenhunzinho voto contra, apesar de estar cheia de parlamentares conservadores e alinhados ao governo federal, que se coloca contra o plantio.
Liguei para o gabinete do deputado Pinato para saber se a ideia da audiência pública significa que ele é a favor da regulamentação do plantio de Cannabis no Brasil. Sua assessora disse que, por enquanto, ele é a favor da discussão. E fez bastante questão de frisar que estava falando apenas do uso medicinal.
Mas parece claro que os representantes do agronegócio brasileiro no mínimo estão interessados em entender melhor o tema. Um mês atrás, esta coluna publicou a notícia de que uma tradicional empresa do setor está processando a União pelo direito de plantar cânhamo, que é a planta de maconha quando desprovida de THC, a substância psicoativa que provoca crises de riso e apreço por reggae.
Significa que, nesse assunto, os agricultores são bem mais progressistas que a classe médica, a julgar pelo posicionamento de várias de suas entidades profissionais. Mês passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) juntas divulgaram um “ decálogo sobre a maconha ”, uma espécie de lista de dez mandamentos sobre a planta. Já no primeiro, os médicos tentam encerrar o assunto: “A Cannabis sativa e a indica [sic] não podem ser consideradas medicamentos e, portanto, não existe ‘maconha medicinal’”. Ou seja, segundo as associações médicas, o assunto que tem animado o agronegócio brasileiro nem sequer existe.
Claro que um pedaço dessa discussão tem a ver com algo bem simples de entender: dinheiro e poder. Para muitos médicos, a Cannabis é uma ameaça — um remédio sobre o qual a maioria deles não conhece nada, produzido à revelia da indústria farmacêutica, que tem relações promíscuas com a classe médica. Já para os agricultores, é uma oportunidade de negócios, independentemente do conservadorismo da classe: a cannabis é uma commodity de alto valor, que tem condições ideais para crescer no Brasil.
O fato é que, se a bancada ruralista abraçar mesmo o tema, o rumo do debate no Congresso Nacional muda. Com 247 deputados e 38 senadores, ela é de longe a mais poderosa do parlamento — muito mais que a chamada bancada evangélica, que não chega a 100 parlamentares e está mais próxima do governo nessa questão.
Na semana passada, a médica Carolina Nocetti, fundadora de duas empresas médicas especializadas em Cannabis , uma para treinar médicos e a outra para atender pacientes, disse que sentiu a maré mudando no Congresso Nacional. “O representante do CFM foi atacado por todos os lados, da esquerda e da direita”, disse. “Faz tempo que acompanho esses debates em Brasília. Nunca fiquei tão otimista de que estivéssemos perto de uma regulamentação.”
Claro que, se essa regulamentação acontecer com apoio ruralista, ela será bastante restritiva, para garantir que nem 1 grama de Cannabis acabe sendo usado de maneira com que alguém se divirta. Será bem menos do que os defensores da legalização querem, mas muito mais do que preferem os Bolsonaros e seus ministros.