Concorde você ou não, muito em breve, produtos à base de cannabis chegarão à farmácias e drogarias no país, vendidos somente com prescrição médica e voltados ao controle de doenças relacionadas ao sistema nervoso central. Depois de aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o novo regulamento para esses produtos entra em vigor em março de 2020, quando se completa o prazo de 90 dias da publicação no Diário Oficial da União.
Derivados da maconha, alguns princípios ativos já poderão ser receitados como remédios e o uso dessas substâncias nada tem a ver com a droga que é fumada em sua forma de “baseado”, fomentando o tráfego e gerando muita polêmica sobre seus efeitos no organismo dos usuários. Os canabinóides que passam pela regulamentação têm uma forma de uso muito diferente dos cigarros de maconha, atuando única e exclusivamente como mediadores químicos em pacientes com distúrbios ou alterações neurológicas.
Esses derivados, aliás, já são indicados por vários médicos especialistas há cerca de dois anos, em consultórios espalhados pelo Brasil. É o caso do neurologista Pedro André Kowacs, coordenador do Setor de Cefaleias do Serviço de Neurologia do HC-UFPR e chefe do Serviço de Neurologia do Instituto de Neurologia de Curitiba.
Recém-publicado, o regulamento deve dar vasão para um novo mercado, inclusive expandindo as pesquisas nacionais dos compostos da cannabis e seus benefícios, bem como possíveis prejuízos à saúde, a exemplo das pesquisas que vêm sendo realizadas pelo Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto, e pelo Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba.
Além dos polos de pesquisa, começam a surgir cursos, validados pelo MEC, para profissionais da saúde que procuram se especializar sobre o assunto. É o caso da primeira pós-graduação de Medicina Canabinoide que será ministrado, em São Paulo, com duração de 18 meses, pelo urologista César da Câmara Segre — um dos fundadores da startup Dr Consulta. E a tendência é que nos próximos anos esse movimento cresça. Inclusive, o canabidiol deve ser incluído entre os conteúdos ensinados na graduação em medicina.
Cannabis e saúde
Lá fora, o mercado bilionário da cannabis tem encontrado inúmeras soluções para seu uso medicinal, incluindo uma nova leva de startups da área da saúde. Como a Surterra Wellness, fundada em 2014, nos Estados Unidos, que realiza estudos de pesquisa clínica relacionados ao tratamento com canabinoides para ansiedade e dor. Ou ainda a também americana Innovative Industrial Properties, criada em 2016, que compra terrenos e edifícios para o cultivo ou processamento da planta usada como medicamento.
O Canaltech conversou com Kowacs para entender melhor a situação brasileira, os paradigmas e os desafios da nova regulamentação, tanto do lado de quem produz, quanto do lado de quem precisa da substância para ganhar mais qualidade de vida. O neurologista comenta sobre a importância dos estudos em relação à cannabis e os seus efeitos no organismo humano, inclusive, porque a regulamentação aprovada pela Anvisa deverá ser revisada em até três anos, de acordo com últimas evidências científicas documentadas sobre seu uso.
Durante a conversa, Kowacs também frisou sobre os riscos de entrar na onda de um remédio, sem analisar onde a substância pode, realmente, ser eficiente. Isso acontece com pessoas impulsionadas por ilusões e ideias de tratamentos milagrosos, como ocorrido com relação à fosfoetanolamina, divulgada em São Carlos que promovia a cura do câncer, sem que tivesse sido de fato comprovado.
Canaltech: Quais impactos a medida da Anvisa deve gerar nos tratamentos com o uso medicinal da cannabis?
Pedro Kowacs: A medida visa facilitar o acesso dos pacientes, porque hoje o processo de autorização é muito burocrático e complicado. A regulamentação, no entanto, não altera o modo de prescrição dos médicos. O canabidiol [conhecido como CBD, um dos compostos da cannabis], neste ponto, é uma medicação segura que não funciona para “dar barato” e tem uma indicação precisa.
CT: Em quais tratamentos são mais usados os compostos da cannabis?
P.K.: De acordo com a literatura, o canabidiol é indicado para alguns fins terapêuticos, primordialmente para tratamento de epilepsia refratária em crianças e, possivelmente, em alguns adolescentes e adultos. Veja bem que o CBD não vai ser eficiente em todos os casos. Além disso, seu uso foi testado como medicamento adicional, alinhado a outro medicamento tradicional. Não se tem ainda a confirmação que possa ser um tratamento exclusivo.
O uso da cannabis medicinal era previamente indicado para o tratamento de pacientes com câncer terminal, nos quais contribui para aliviar as náuseas e melhorar o apetite. No que se refere a dor, o tratamento com cannabis até hoje não se mostrou muito efetivo.
Portanto, é preciso tomar cuidado com as informações recebidas, que indicam o uso do CBD para “tudo”. A mídia vive de ibope, e cada vez que surge uma reportagem sobre um novo remédio, as pessoas “enlouquecem” e são capazes de fazer qualquer coisa para obter o medicamento divulgado. Ao longo dos anos, já tivemos a oportunidade de acompanhar muitas medicações que foram moda, como o óleo de Lorenzo, extrato de barbatana de tubarão, a fosfoetanolamina e outros.
CT: A medida da Anvisa deve romper alguns preconceitos em relação ao medicamento?
P.K.: Como de fato, o canabidiol tratou crises de difícil controle em crianças com epilepsia, houve uma verdadeira revolução no ponto de vista de opinião pública. Até então, o senso comum era de que a cannabis fosse apenas uma droga, e contrária a uma visão terapêutica. Hoje em dia, acontece o oposto, todo mundo quer usar a cannabis para tudo.
Essa moda tem gerado discussões até mesmo nos EUA, uma vez que o uso precipitado de qualquer fármaco traz riscos muito grandes para os pacientes. Gosto de exemplificar os riscos como o que houve com o uso precipitado do medicamento talidomida [nos anos 50], que levou ao nascimento de crianças com deformidades físicas. Ela foi permitida em alguns países, como Brasil, mas não nos Estados Unidos, porque lá o escritório federal responsável pela autorização de medicamentos percebeu que a talidomida não havia sido adequadamente testada.
É muito importante que as pessoas entendam a importância destes testes. Por exemplo, trabalho para a indústria farmacêutica no teste de novos medicamentos para epilepsia, cefaleia, esclerose múltipla, AVC, e outras, e o rigor nestas pesquisas é muito grande.
Uma consulta de pesquisa demora de três a cinco vezes mais tempo que uma consulta comum. Todas as informações devem estar muito bem documentadas, e os efeitos colaterais muito detalhados, para que possa ser atribuída uma relação com a medicação em teste. Este é um dos motivos pelos quais há uma demora de 15 a 20 anos desde a descoberta da nova molécula até que ela entre no mercado.
CT: Atualmente, de onde vem os medicamentos usados em tratamentos?
P.K.: Quanto ao CBD, temos no Brasil compostos legalmente importados do Uruguai, da Inglaterra ou dos Estados Unidos. Nesses mercados, há uma competição muito grande. Sem medicamentos nacionais, o que temos no Brasil são alguns produtos ilegais e não registrados na Anvisa. Como não possuem selo de qualidade, não se sabe como foi o processo de produção, sua composição, onde foram produzidos e quem foi o responsável pela produção.
CT: Já abordamos a importância do canabidiol, mais quais são as diferenças terapêuticas dele comparadas com o THC?
P.K.: A tolerabilidade do canabidiol é muito maior que a do THC [princípio psicoativo da cannabis] que tem efeitos tóxicos no uso de longo prazo, em altas doses. O THC não é uma substância segura, independente de qualquer efeito terapêutico, porque pode induzir surto psicótico, induzir quadros paranoides [as possíveis nóias] e, em altas doses em ou uso prolongado, pode prejudicar a memória.
Existem indivíduos que usam o THC como ansiolítico, sem que sua segurança tenha sido comprovada. Mesmo que o THC esteja em alguns compostos legalmente importados, nesses medicamentos ele tem baixa concentração. É usado como produto acessório.
O THC também vem sendo testado em outras áreas, mas são necessários testes de eficácia que não sejam relatos de caso. Veja, quando você vai testar um produto, são 4 fases de testes, que validam desde estudos em animais, ajustes de doses, estudos de eficácia e tolerabilidade e, por fim, estudos na população. Os estudos de eficácias e tolerabilidade têm que incluir um número de participantes calculado para comprovar o efeito desejado. Relatos ou séries de casos, às vezes, não são suficientes para validar uma medicação.
CT: Qual é a diferença entre fumar e usar um medicamento à base de cannabis?
P.K.: Não dá para comparar. Quando alguém fuma maconha, existem no cigarro diversos compostos não purificados, produtos em estado bruto, como o canabinol [que pode causar lesões pulmonares e problemas de memória de curto prazo]. Como já foi dito, não existe uma padronização na composição do fumo que garanta a confiabilidade e a segurança do produto.
CT: A maconha como um todo reage de uma forma diferente do que um único componente. Nesse contexto, a ciência deve desenvolver novos medicamentos considerando-a como uma planta única? Ou sempre haverá necessidade de separar seus compostos?
P.K.: Com certeza, dividindo. É o que já está sendo feito, hoje, criando compostos artificiais, sintetizados, e um dos exemplos disso é a nabilona, um canabinóide artificial. É possível desenhar a molécula em laboratório, sem precisar retirar a molécula de plantas para obtenção de produtos.
Desta maneira é possível melhorar essas moléculas para as necessidades humanas, como vem sendo feito há muitos anos com os antibióticos, com os anti-inflamatórios, antiepilépticos e outros. Mas pode ter certeza que se for mais adequado ter uma combinação de compostos, vai se precisar antes saber exatamente qual é proporção dos mesmos. Inicialmente, será necessário testar cada substância individualmente para somente depois combina-las e então testar a combinação.