Sempre que se fala da legalização do consumo, cultivo, distribuição e venda da canábis para fins recreativos alguém vem pedir “estudos” e recomendar “olhar para a experiência dos outros países”. É um conselho sensato.
Comecemos pelos estudos, sim. Onde estão os que justificaram a proibição do consumo de canábis? A resposta é simples: não estão. Não foram apresentados quaisquer argumentos científicos para justificar as três convenções da ONU que a partir dos anos 1960 fundamentam legalmente a proibição de uma série de substâncias denominadas como “drogas”, e nas quais a canábis está classificada como tão perigosa como a heroína.
Foi o mero preconceito, baseado – como é costume no preconceito – numa mistura de ignorância e má-fé que manteve, até muito recentemente, a canábis como uma substância maldita, apesar da evidência crescente das suas propriedades terapêuticas.
Há quase 18 anos Portugal esteve na vanguarda internacional do combate ao preconceito, ao descriminalizar o consumo das substâncias catalogadas como “drogas”. Quem se opôs clamava que isso iria transformar o país num “paraíso para toxicodependentes”; ainda hoje a alteração legal é citada no mundo como um exemplo a seguir.
De vanguardista, porém, Portugal passou a conservador, mantendo até este ano a proibição do uso da substância. Muitos outros países europeus, assim como o Canadá e a maioria dos estados americanos, foram reconhecendo as suas qualidades terapêuticas e legalizando o seu uso médico. Mas cá só em junho, e a duras penas, se seguiu esse exemplo. E a regulamentação da lei, que deveria ter sido apresentada até setembro e cujos pormenores ainda não são conhecidos, foi apenas nesta quinta-feira aprovada no Conselho de Ministros.
Entretanto, o mundo seguiu em frente, para a legalização total. O Uruguai foi o primeiro a fazê-lo, em 2013. Seguido, em outubro, pelo Canadá, que tinha aprovado o uso medicinal em 2001.
Nos EUA, tradicionalmente um bastião do proibicionismo (a doutrina das três convenções da ONU), e apesar de a lei federal o manter, já só três estados proíbem o uso da canábis para qualquer fim; 33 legalizaram o consumo medicinal, dez o consumo recreativo e nove a distribuição comercial (o Colorado foi o primeiro, com a venda comercial, em lojas certificadas, a iniciar-se em 2014).
Como previsível, quer nos EUA (com atribuição de licenças a privados) quer no Uruguai (com o Estado a assegurar cultivo, distribuição e venda através de farmácias), não sobreveio qualquer das catástrofes aventadas, com o encaixe de impostos nos EUA a ultrapassar as melhores expectativas.
Se a canábis tem riscos? Tem, claro. Como quase todas as substâncias. Pode causar reações adversas – o risco de psicose é 10% superior em quem consome -, dependência psicológica e não deve ser consumida por menores de 18.
De acordo com o último inquérito (de 2016-17), em Portugal pouco mais de um milhão de pessoas, ou seja, 10,9% da população, consumiram canábis alguma vez ao longo da vida; entre os mais jovens – 15-34 anos -, a percentagem sobe para 14,9%. Cerca de 510 mil assumiram tê-la usado no último ano (780 mil entre os mais jovens) e 430 mil no último mês (620 mil dos 15 aos 34); 370 mil serão consumidores “correntes”. Desses, 52% consomem todos os dias.
2637 pessoas – menos de 2% dos que consomem todos os dias – foram, em 2015, contabilizadas como estando em tratamento devido a um consumo problemático da substância. Tal, porém, não constitui motivo para obstar à legalização, ou seria forçoso proibir tabaco, álcool e medicamentos legais com taxas de consumos problemáticos bem superiores. Assim como o açúcar, o sal, gorduras animais e tantas outras substâncias de venda livre cujas consequências em termos de morbilidade e mortalidade são infinitamente mais gravosas.
Aliás, que sentido faria proibir tudo o que tem o potencial de consumo abusivo ou de malefícios para a saúde? Não devemos antes certificar que quem quer consumir o faz com o máximo de segurança?
Legalizar implica que a canábis à venda terá de ser, como qualquer produto legal, regulamentada e fiscalizada em termos de qualidade, locais de venda e idade admissível para compra. Terá de haver informação rigorosa e advertência sobre riscos, contraindicações e efeitos secundários. Será possível saber se o produto é “forte” ou “fraco” e escolher em conformidade – contrariando assim os argumentos de quem se opõe à legalização pela crescente “potência” da canábis disponível no mercado negro.
Legalizar permite não só separar a venda da canábis da de outras substâncias muito mais perigosas como retirar ao crime organizado uma renda considerável, transferindo-a para a economia formal e permitindo cobrar impostos. E permitirá que o país possa aproveitar plenamente as excecionais condições para o cultivo da planta que estão a atrair dezenas de empresas estrangeiras no fito da produção de canábis terapêutica.
Por fim, ou por princípio: legalizar é respeitar a ideia fundamental de que cada indivíduo é responsável por si e pelas suas opções e que o Estado deve reduzir ao mínimo a sua intervenção no que respeita a comportamentos que não afetam terceiros. O maior perigo da legalização da canábis é concluir-se que a proibição foi das coisas mais estúpidas de sempre.
Fonte: Diário de Notícias/ Portugal