Os desafios para o uso da maconha medicinal no Brasil para além da Anvisa

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O uso medicinal da maconha no Brasil pode ter um novo avanço nos próximos dias. Nesta terça-feira (8), a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deve votar duas propostas de regulamentação do cultivo da Cannabis para pesquisa e produção com fins medicinais e registro desses produtos.

Há o risco, contudo, de divergências políticas atrasarem a votação. Além disso, ainda que a proposta seja aprovada, especialistas alertam que serão necessárias mudanças futuras para contemplar as necessidades de todos os pacientes.

Em vigor desde 2006, a Lei de Drogas prevê que a União pode autorizar “o plantio, a cultura e a colheita” de “vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas”exclusivamente para “fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização”.

Com o avanço de evidências científicas dos benefícios da erva para a saúde, têm crescido nos últimos anos decisões judiciais que permitem o cultivo ou a importação de substâncias. Ao todo, 6.789 pacientes já obtiveram o aval para importar esses produtos, com base em laudos médicos.

As doenças mais frequentemente tratadas pela Cannabis são epilepsia, autismo, dor crônica, doença de Parkinson e alguns tipos de câncer.

Desde 2017, a Anvisa também permite a produção e comercialização do Metatyl, medicamento à base de maconha, indicado para adultos com rigidez muscular excessiva relacionada à esclerose múltipla. A medicação é composta por dois tipos de canabinoides: o canabidiol (CBD) e o tetrahidrocanabidiol (THC).

Em junho, a agência abriu para consulta pública duas propostas de resoluções. Uma estabelece que o plantio de Cannabis deve ser restrito a empresas, feito em locais fechados e cujo acesso será controlado por portas de segurança e com uso de biometria. Também será exigida a apresentação de planos de segurança para evitar desvios, e as empresas serão alvo de inspeções periódicas.

A segunda resolução prevê que os medicamentos desenvolvidos sejam submetidos a regras específicas de análise e aprovação para registro, aval necessário para que sejam comercializados no País.

Disputa política na liberação da maconha medicinal
Nesta terça, será apresentada uma versão final do texto, que precisa do voto favorável da maioria dos cinco diretores da Anvisa para ser aprovada. É possível que um dos diretores peça vista, ou seja, mais prazo para votação.

No cargo desde agosto, Antônio Barra, indicado pelo governo de Jair Bolsonaro, tem ressalvas ao aval para o plantio [da maconha medicinal]. “Me causaria muita preocupação uma autorização ampla, geral para que seja plantada. Não vamos poder fiscalizar nem a planta nem tampouco a produção do óleo contendo o princípio ativo”, disse em sabatina na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, em julho.

No início de 2020, a maioria dos diretores da agência será de indicação do governo Bolsonaro. Tanto o presidente quanto ministros como Osmar Terra (Cidadania) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde) são contra a proposta de cultivo da planta no Brasil. “O Osmar Terra trata esse assunto e estou na linha dele nessa questão da maconha. Ele diz que [a proposta em questão] abre as portas para o plantio de maconha em casa”, disse Bolsonaro a jornalistas em agosto.

Principal voz contrária à regulação da maconha medicinal, Osmar Terra chegou a defender o fechamento da Anvisa caso as novas regras para o plantio de Cannabis sejam aprovadas. “Pode ter ação judicial. Pode até acabar a Anvisa. A agência está enfrentando o governo. É um órgão do governo enfrentando o governo. Não tem sentido”, disse em entrevista ao Jota.

De acordo com o ministro, a proposta da agência é fachada para um plano de liberação do uso recreativo de todas as drogas. Terra defende o uso de medicamento com canabidiol sintético, em desenvolvimento pela farmacêutica brasileira Prati-Donaduzzi. Além de eliminar a necessidade do plantio, o medicamento sintético não contém THC, substância que, dependendo da quantidade, pode levar a efeitos psicoativos.

Uso medicinal da maconha no Brasil

2014: Justiça permite que a família da brasileira Anny Fischer, que sofre com síndrome rara, importe dos Estados Unidos óleo de maconha medicinal e Anvisa passa a receber pedidos similares.

2014:Conselho Federal de Medicina autoriza médicos a prescreverem o canabidiol para crianças com epilepsia e que não tenham tido sucesso em outros tratamentos.

2015: Anvisa retira o canabidiol da lista de substâncias proibidas e simplifica regras para sua importação.

2016: Após decisão judicial, Anvisa autoriza prescrição e importação de medicamentos com THC.

2016: Famílias conseguem habeas corpus para plantar e extrair óleo de maconha para uso medicinal próprio.

2017: Anvisa aprova primeiro medicamento à base de maconha.

2019: Anvisa coloca em consulta pública proposta para cultivo de Cannabis para pesquisa e produção de medicamentos e outra com regras de registro e pós-registro desses produtos.

O Ministério da Saúde também é contra o cultivo da Cannabis no Brasil e só concorda com o uso medicinal para o tratamento de pacientes com epilepsia que não respondem a remédios convencionais contra convulsões. “Assim, para atender a uma única indicação terapêutica, sendo baixa a demanda, a pasta entende que não é necessária a instalação de capacidade nacional para cultivo da Cannabis no Brasil, considerando ainda os riscos à saúde do cultivo indiscriminado”, informou o ministério, em nota enviada ao HuffPost Brasil.

Ex-ministro da Saúde, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) é defensor da maconha medicinal e do debate sobre o uso mais amplo. “O que posso dizer como psiquiatra é que já internei muitas pessoas por alcoolismo, uso de morfina, heroína, cocaína, mas nunca internei um doente porque tá fumando maconha. Fumar maconha é quase habitual, assim como tomar álcool de maneira moderada”, disse ao HuffPost.

De acordo com emedebista, a posição de Osmar Terra, que é seu correligionário, reflete “a maioria do pensamento da sociedade”, mas a realidade mostra que a política de “guerra às drogas” não tem sido efetiva. “Se um de nós resolver fumar um cigarro de maconha hoje, não vai ficar sem fumar. Todo o aparato montado não está impedindo que as coisas aconteçam. Diante disso, alguns pensadores mais avançados acham que a liberação não seria um mal tão grande, talvez trouxesse mais benefício do que malefício”, completou.

Outros ex-ministros da Saúde também são favoráveis ao uso medicinal da Cannabis, como Ricardo Barros, atual deputado federal pelo PP do Paraná. Em audiência pública na Câmara, em julho, ele afirmou que a regulação pode “reduzir para o SUS (Sistema Único de Saúde) o custo de determinados tratamentos, especialmente se tivermos liberdade de utilizar a planta adequada da forma mais simples”.

CFM resiste à maconha medicinal
Assim como o atual ministro da Saúde, o Conselho Federal de Medicina (CFM) só reconhece o uso medicinal da erva em casos de pacientes com epilepsia refratária e menores de idade, de modo que há uma dissonância com a posição da Anvisa, inclusive na liberação do Metatyl.

Integrante da Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED), o médico Ricardo Ferreira afirma que a disputa de poder entre a classe médica e a agência se intensificou com o debate da regulação da Cannabis. “Há fatores políticos. Há uma discussão grande entre o CFM e a Anvisa, uma rixa. E a Cannabis acentuou isso. Como você tem um remédio na farmácia que o médico poderia legalmente prescrever mas o CFM não aceita que o médico prescreva?”, questiona o ex-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis (SBEC).

Por esse motivo, ainda que a proposta da Anvisa seja aprovada, seria necessária uma mudança de postura do CFM.

Há duas semanas, o especialista se reuniu com a cúpula do CFM em Brasília. A SBED irá enviar um documento com um resumo de artigos científicos que comprovam a eficácia do uso da Cannabis para tratamentos além da epilepsia. De acordo com Ferreira, o conselho se mostrou aberto a reavaliar seu posicionamento se entender que é comprovado o sucesso do tratamento e a segurança desse tipo de uso medicinal da planta.

De acordo com o especialista, a crítica do CFM é em relação à qualidade dos estudos sobre o tema. “Na medicina tradicional os trabalhos chamados de alta qualidade, que os médicos consideram relevantes, não são relatos de caso. São os chamados estudos multicêntricos randomizados duplo cego”, afirmou ao HuffPost.

Isso significa que são estudos feitos em vários centros de pesquisas diferentes, em que a pessoa toma o medicamento e quem está prescrevendo não sabe se o paciente está recebendo medicamento real ou placebo. A pessoa que prescreve não é a pessoa que avalia o caso.

O alto custo desse tipo de pesquisa é incompatível com o baixo retorno financeiro da maconha medicinal. “Esses estudos são extremamente caros. São milhões de dólares. Envolve o pagamento de várias pessoas, tem que fazer uma cobertura de saúde se essas pessoas tiverem algum problema a respeito do medicamento. Como vai fazer um estudo usando uma planta que não dá todo esse retorno para explicar se ela funciona ou não? Porque uma planta você não pode patentear”, destaca Ferreira.

O médico ressalta, contudo, que, de modo geral, “não existe essa necessidade imperativa desse tipo de estudo de qualidade para outras doenças”. “A grande maioria dos tratamentos médicos não tem evidência científica de primeira linha. A gente faz porque existe evidência científica e evidência prática forte”, completou.

Além do fator financeiro, outro elemento que dificulta a pesquisa é o fato de o plantio da planta ser proibido. Na avaliação do especialista, a aprovação da proposta da Anvisa pode levar a uma melhora tímida neste ponto por ser restritiva. ”Só vão poder participar grandes laboratórios com grandes investimentos. Esses laboratórios têm até certo ponto capacidade de produção de artigos científicos, mas certamente não terão capacidade e empenho de produzir um estudo que custe milhões porque não trará retorno”, afirmou.

Proposta da Anvisa é primeiro passo
Em contraponto ao ministro Osmar Terra, o representante da SBED afirma que “o argumento de que essa regulação da Anvisa vai liberar a Cannabis no Brasil é um absurdo, não têm o menor cabimento”. “Qualquer pessoa que lê percebe que a resolução foi pensada em atender à demanda de proibição do uso que seria indevido, para evitar desvios”, afirma.

O médico destaca que o texto prevê que o cultivo tem de ser num verdadeiro bunker, um cofre inox, e até depois de cultivada a planta, a extração e o processo de produção do medicamento serão extremamente controlados — do qual só grandes indústrias poderão participar.

O caráter restritivo da proposta foi criticado por outros especialistas e por pacientes que dependem da Cannabis para tratamentos de saúde. Hoje o alto custo da medicação é um dos fatores que levou ao crescimento de ações judiciais para que planos de saúde e o SUS forneçam os produtos.

Uma das preocupações é que o grau de exigência para a produção seja tão elevado que o custo do produto final seja muito alto. “Tem que pesar os prós e contras do controle da qualidade da substância que chega ao usuário final e, de outro lado, o custo e o quanto esse custo vai levar pessoas a procurarem alternativas no mercado ilegal. Se for proibitivo, não adianta. As pessoas vão continuar a procurar outras formas de acesso a esse medicamento, apelando para o cultivo próprio”, afirma a pesquisadora Ana Paula Pellegrino, doutoranda em ciência política na Universidade de Georgetown, em Washington (EUA).

A especialista destaca que na consulta pública um dos pontos discutidos foi a regulação para o cultivo próprio para uso medicinal, que está fora da proposta da Anvisa, mas em alguns casos tem aval judicial. “Recentemente, foi presa pessoa que faz plantio para consumo medicinal próprio. Assim como essa pessoa existem várias que já fazem e várias inclusive com autorização judicial para isso. Há um movimento muito forte de judicialização no acesso e que a Anvisa deixa de avançar num espaço onde a própria Justiça já avançou no direito de algumas pessoas, então você cria uma distorção”, afirma.

De acordo com o advogado Emílio Figueiredo, a aprovação da resolução da Anvisa não pode impactar negativamente pacientes com permissão judicial para cultivo com fins medicinais. “As decisões que concedem salvo-condutos para cultivar Cannabis como ferramenta terapêutica em processos de habeas corpus estão transitadas em julgado (não cabe mais recurso) e por isso são definitivas. Qualquer regulamentação não afeta essas decisões”, diz ao HuffPost.

Figueiredo também ressalta que ainda são possíveis novas decisões nesse sentido. Ele é autor da peça jurídica que garantiu a liberação do cultivo à Abrace Esperança, única associação de pacientes no Brasil que tem autorização judicial para cultivo da maconha para fins medicinais. A entidade atende a mais de 2 mil pacientes.

O diretor-presidente da Anvisa, William Dib, tem um entendimento contrário. “Grande parte das ações coloca uma autorização até a regulamentação do processo. Quando for regulamentado, acredito que o Judiciário vai rever essas sentenças”, afirmou à Folha de S. Paulo.

De acordo com Dib, caso a resolução seja aprovada, a expectativa é de que os produtos cheguem ao mercado em um ano. O presidente da Anvisa também estima que o impacto “alcançaria o índice de 13 milhões de pessoas que seriam passíveis [de usar os medicamentos]”.

Passados 13 anos da sanção da lei que prevê a possibilidade da regulação do uso medicinal da maconha, Dib disse ser urgente a norma para regular o plantio e assegurar a qualidade da medicação.

Ana Paula Pellegrino lembra que há uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal em 2014 cobrando a Anvisa e o Ministério da Saúde por não ter regulamentado a maconha medicinal.

Antes de deixar o comando da Procuradoria-Geral da República, Raquel Dodge enviou um parecer em 17 de setembro ao STF (Supremo Tribunal Federal) em que afirmou que houve “omissão inconstitucional” do poder público na implementação das condições necessárias ao acesso ao uso medicinal da Cannabis. A manifestação ocorreu em uma ação que questiona trechos da Lei de Drogas e do Código Penal.

Para Pellegrino, uma das razões da demora na regulação é a falta de clareza no debate. “Há muito preconceito contra essa substância, muita dificuldade de entender as aplicações medicinais, apesar das evidências científicas. Você tem resistências políticas a esse avanço”, afirma.

A especialista destaca que experiências no exterior podem contribuir com a discussão. “O principal ponto é que a gente já sabe como acontece em outros países. Nos Estados Unidos, a maconha medicinal é regulada em mais da metade dos estados, com efeitos diferentes e impactos diferentes e regulações diferentes.”

Apesar de considerar a proposta da Anvisa insuficiente para atender completamente às necessidades dos paciente, Ricardo Ferreira, do SBED, vê a iniciativa como um avanço importante. “Não vai resolver a demanda num primeiro momento e acho que nem tardiamente, só que é um primeiro passo que precisa ser dado. Assim como em outros países, a regulamentação da Cannabis não aconteceu de uma vez. Foram processos. No Brasil, a Cannabis já foi regulamentada pela Anvisa desde 2015 e agora é uma revisão dessa regulamentação. Esse passo precisa ser dado, mas outros passos precisam ser dados na sequência”, afirmou.

O médico destaca que hoje a única liberação efetiva é para importação do CBD porque no caso do THC a Anvisa só libera para pessoa física e as empresas estrangeiras só liberam para pessoa jurídica. “Nesse momento, no Brasil, é impossível importar THC e ele pode ser importante para diversas patologias, principalmente para aquelas em que o CBD não funciona”, afirma, em referência a casos de dor crônica. Quanto ao efeito psicoativo, o médico afirma que há pacientes que conseguem perceber o alívio da dor com subdoses, sem que a alteração de consciência seja provocada.

Fonte: Huffpostbrasil

 

 

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