Assim como a apresentação sobre os desafios enfrentados pelos idosos LGBT, a discussão sobre canabidiol lotou a sala do X Congresso de Geriatria e Gerontologia do Rio de Janeiro, o GeriatRio 2019. Nos Estados Unidos, 33 estados liberaram o uso medicinal da Cannabis sativa, a maconha, mas aqui as restrições continuam atrasando pesquisas e, em última instância, impedindo que pacientes possam se beneficiar do tratamento. Resolução do Conselho Federal de Medicina de 2014, que já deveria ter sido revista, prevê o “uso compassivo” do canabidiol exclusivamente para o controle de epilepsia na infância e adolescência que seja refratária a terapias convencionais. A prescrição só pode ser feita por psiquiatras, neurologistas e neurocirurgiões.
Enquanto isso, estudos realizados no exterior mostram sua eficácia no controle de sintomas relacionados a inúmeras doenças, inclusive a demência, o que levou um dos debatedores, Ivan Abdalla, médico do Centro de Demência de Alzheimer do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a comentar: “não seria compassivo o uso para idosos com demência que gritam durante 24 horas?”. O primeiro passo é despir-se do preconceito que emperra o debate. Médicos e pesquisadores não defendem o uso recreativo da maconha, e sim a utilização de suas propriedades terapêuticas.
Ouvir a ciência ajuda muito. Assistir ao documentário “The scientist” (“O cientista”), disponível on-line, também. Lançado em 2015 e dirigido por Zach Klein, o filme mostra a trajetória de Raphael Mechoulam, que acabou de completar 89 anos e continua dando expediente na Universidade Hebraica de Jerusalém. Na década de 1960, o então jovem cientista conseguiu isolar o THC (tetra-hidrocarbinol), o principal componente ativo da maconha, mas não parou por aí. Ao testar seus efeitos, a equipe de Mechoulam descobriu que o cérebro tem um receptor para canabinoide, isto é, uma estrutura para fazer essa associação. Como assim? Não que o cérebro tenha receptores para a maconha; na verdade, há compostos no nosso corpo que “mimetizam” a marijuana para manter o equilíbrio interno. Por isso a descoberta da equipe foi chamada de sistema endocanabinoide.
Tentando a difícil tarefa de traduzir uma linguagem científica para algo mais simples: o sistema que existe em nós, e em todos os mamíferos, é composto pelos receptores CB1 e CB2, que são estimulados por componentes chamados endocanabinoides produzidos naturalmente pelo organismo, como a anandamida. Juntos, eles se transformam em “mensageiros neurais” que modulam uma lista grande de funções cerebrais, incluindo ansiedade e humor. Se não conseguimos manter esse ambiente interno estável, a pessoa sofre alterações dessas características, mas os sintomas podem ser atenuados ou eliminados quando os receptores se associam ao medicamento à base de canadibiol, que funciona como uma espécie de reparador do circuito que está “dando curto”. Não é à toa que egípcios, assírios e gregos usavam a Cannabis como remédio.
Em 1995, Mechoulam fez uso de THC em crianças israelenses em tratamento contra o câncer, para diminuir a náusea e os vômitos. Foram administradas gotas da substância diluídas em azeite. O sucesso terapêutico não foi acompanhado de efeitos psicoativos, mas o professor ficou decepcionado: “nada aconteceu, não tive influência sobre os oncologistas”, relata. No GeriatRio, o cientista João Ricardo Lacerda de Menezes, do Laboratório de Neuroanatomia Celular da UFRJ, lembrou que já há mais de 26 mil artigos científicos sobre o tema. Enfatizou a baixa toxicidade do canadibiol e que seus efeitos adversos são leves.
A Anvisa autoriza a importação de 11 produtos, mas o custo é elevado. Estamos presos a um círculo vicioso: a dificuldade de acesso limita o conhecimento dos médicos sobre o sistema endocanabinoide, e os cientistas brasileiros precisam de liberdade para pesquisar. “Os estudos ainda são heterogêneos e de baixa abrangência. Sua utilização parece ser promissora no tratamento dos sintomas neuropsiquiátricos nas demências, mas é urgente a regulamentação para a pesquisa nacional produzir trabalhos a respeito”, afirmou o médico Ivan Abdalla.