NA MEDICINA CANÁBICA, O FUTURO CHEGOU, MAS ESTÁ MUITO MAL DISTRIBUÍDO

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Talvez você esteja confuso com as notícias sobre Cannabis medicinal. Na semana passada, saiu em todos os jornais que a Anvisa legalizou o troço e, portanto, empresas farmacêuticas finalmente vão poder fazer registro de remédios feitos de maconha, como já acontece em praticamente todos os países desenvolvidos no mundo. Mas espera, como assim? Era ilegal antes? Não tem um monte de gente que já está usando esses remédios?

Não tem até uma senadora da República — Mara Gabrilli, do PSDB de São Paulo — dizendo que tem dores terríveis e só pode ser senadora porque consegue maconha (em óleo, mas, ao que consta, não só, porque o óleo tem limitações quando se necessita de efeitos rápidos, e esse é o caso dela)?

A real é que remédios de maconha já existem, vários, e tem milhares de pessoas usando no Brasil. Atribuem ao escritor canadense William Gibson a frase: “o futuro já chegou, está é mal distribuído”, em referência às incríveis tecnologias que já existem, mas estão completamente ausentes da vida da maioria. No caso da maconha medicinal, isso é muito verdade.

Muita gente usa, alguns com resultados espetaculares. Apenas uma pequena fração de privilegiados está passando pela estreita brecha que a Anvisa abriu em 2015 — um insuportável e caríssimo processo burocrático para importar uma lista muito restrita de remédios estrangeiros. Alguns milhares compram seus óleos da Abrace Esperança , uma organização paraibana que a Justiça autorizou a plantar maconha.

Há muitos outros que estão se equilibrando numa corda-bamba estendida entre a legalidade e a ilegalidade: comprando de variados produtores, uns que são também pacientes e deram escala para suas operações de cultivo e extração para ajudar mais gente, outros que operavam em mercados um pouquinho menos recomendáveis e estão expandindo a atuação. Nesse mercado cinzento provavelmente estão os produtos de melhor qualidade — e também os maiores riscos.

Claro que gente rica e poderosa consegue o remédio quando precisa. Não falta para senadores — nem para ministros, nem para generais. Mas a verdade é que, Brasil afora, há também meios razoavelmente acessíveis de obter acesso a esses remédios.

Basta saber para quem perguntar. Geralmente, o caminho mais barato para conseguir é procurar a associação de pacientes mais próxima de você e tentar ir a uma reunião, para perguntar. Eles costumam ser capazes de conectar os pacientes com algum médico que faça prescrições, e também com alguém que produza o óleo, do lado de fora das regulamentações da Anvisa. Com sorte, é possível encontrar óleos baratos, ou até de graça, para quem não tem condições.

Agora, com a legalização do registro, surgirão outras opções. Andei telefonando para CEOs de empresas farmacêuticas e vi muita gente animada. A Anvisa legalizou o registro de medicamentos, mas eles terão de ser fabricados com insumos importados, já que a plantação de maconha continua sem ser regulamentada.

Isso porque a agência decidiu que não era sua atribuição regulamentar o plantio de nada. A decisão foi tomada com base na opinião de seu diretor, Antônio Barra, que passou três longas horas explicando por quê. Entre outras coisas, ele defendeu que o trabalho da Anvisa é regulamentar mercados que já existem, e não criar mercados novos. “E esse setor não existe no Brasil.”

Eu estava lá. Na entrevista coletiva depois da reunião, perguntei a Barra se esse mercado não existe mesmo. Afinal, já há dezenas de produtores de remédios à base de maconha abastecendo uma rede que cobre todo o país. Ele explicou que a definição daquilo que ele chama de “setor” implica que haja “licitude”. Eu estava falando de tráfico, não de um setor econômico que mereça regulamentação.

No dia seguinte, fui ao emocionante evento de lançamento do Instituto General Villas-Boas, a fundação que vai manter vivo o legado do respeitado ex-comandante do Exército que hoje batalha para resistir ao avanço da esclerose lateral-amiotrófica, que já lhe tirou a capacidade de andar e de falar, mas ainda não a de sorrir.

Houve inclusive um belo discurso de Mara Gabrilli, sobre a importância de tecnologias que preservem a qualidade de vida de quem sofre com doenças graves.

Ao final do evento, em meio aos aplausos, encontrei com Antônio Barra. Perguntei a ele se os produtores de medicamentos que trabalham para manter a qualidade de vida do general deveriam ser considerados traficantes. Ele me disse que, sem dúvida, zelar pela qualidade de vida do general é “meritório”.

Será que alguma coisa pode ser “meritória”, mesmo sem “licitude”? Sei lá. Que o Brasil consiga logo distribuir o futuro com um mínimo de justiça.

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