Por Dr. Pedro Antônio Pierro Neto*, diretor científico do portal Sechat
Muito se falou sobre o uso medicinal da Cannabis no Brasil, em 2019. No entanto, tem gente que alega que está se procurando uma utilização para a planta que justifique o seu uso adulto ou recreativo. Mas será que é isso mesmo? Esse texto conta um pouco dessa interessante historia.
A Cannabis, segundo a literatura, foi uma das primeiras plantas a ser cultivada pela humanidade, com vestígios de sua utilização há cerca de 12 mil anos. A primeira referência descrita para fins medicinais foi em 2.727 a.C. pelo imperador chinês Shen Neng, que a utilizava no tratamento de dores articulares.
Nas dinastias do antigo Egito, seu uso estava vinculado, não só às suas propriedades medicinais, mas também na produção de papiros e em rituais religiosos para a deusa Sechat, padroeira das bibliotecas. Já os assírios utilizavam há mais de 3 mil anos como antidepressivo. Na cultura hindu, religião milenar da Índia, sua utilização está descrita no livro sagrado “Atharvaveda”. Nele, além do uso medicinal, é descrita como um presente do deus Shiva para a humanidade.
Sua entrada na Europa, em algumas das referências bibliográficas, ocorre por volta de 430 a.C. pela Grécia devido a suas propriedades medicinais, e em Roma para confecções de velas para barcos e vestuário. Essa utilização se manteve por mais de 2 mil anos na Europa, visto que as velas das naus que desembarcaram nessas terras em 1500 eram produzidas de cânhamo, uma das variedades da Cannabis.
Considerado como o primeiro livro de farmacologia médica, escrito no ano 70 d.C, “De matéria médica” de Pedânio Dioscórides, descreve mais de mil plantas com propriedades medicinais, entre elas encontramos a maconha, descrita como eficaz para o tratamento de dores articulares e inflamações.
Enquanto o ocidente vivia o obscurantismo científico imposto por ideologias religiosas, o oriente não parou seus estudos médicos, e em 1464 o médico Ibn al-Badri da faculdade medica de Calcutá, descreve pela primeira vez a utilização da Ccannabis no tratamento de epilepsias refratárias.
Já a primeira referência sobre a proibição da Cannabis foi em 1764, quando o imperador francês Napoleão Bonaparte invade o Egito e seus soldados passam a ter contato com a planta. Observando que o uso diminuía a agressividade dos seus soldados, Napoleão proibiu o uso alegando que a planta fazia exatamente o efeito oposto ao observado, que aumentava a agressividade e transformava o usuário em um selvagem.
No Brasil, a referência é descrita em 1808, trazidas pelos escravos, que utilizavam a planta para diversos fins medicinais, sendo o principal para o combate de dores, inicialmente nas senzalas e depois nos quilombos (povoados formados por escravos fugitivos). Com a plantação nas regiões quilombolas, acabou se espalhando e dando origem as principais plantas crioulas do Brasil.
O médico irlandês erradicado em Londres Dr. William O’Shaughnessy é considerado como o primeiro médico a reintroduzir o uso medicinal da Cannabis no ocidente. No período que permaneceu no oriente a serviço do governo britânico, tornou-se professor da Faculdade de Medicina de Calcutá e aprendeu diversas terapias que até então eram desconhecidas na Europa.
Em 1839, já de volta a Londres, publica no periódico médico “Provincial Medical Journal” a utilização de um óleo a base de maconha para o tratamento de epilepsia refratária em uma criança de 43 dias. O uso espalhou-se rapidamente pela Europa e América, e esteve presente na farmacopeia americana, sendo indicada para tratamento de diversas enfermidades, incluindo a dependência de opioides.
Já no Brasil, por volta de 1900 era encontrada nas farmácias em forma de cigarros e xaropes, indicadas para tratamento de dor, tosse, asma, insônia entre outros. A utilização crescia entre as classes mais pobres e passava a competir com produtores de álcool e algodão, sendo considerado um dos motivos para ações mundiais visando sua proibição.
Em 1925, na Convenção de Genebra, com auxilio do depoimento do médico brasileiro Pernambuco Filho, que compara a maconha com os efeitos danosos do ópio, a planta passa ser considerada como uma droga perigosa.
Em 1933, termina a lei seca americana, e o uso da Cannabis, que antes competia somente com a indústria do algodão, passa a competir também com a indústria do álcool. Quatro anos depois, é promulgada a lei de imposto sobre a marijuana, que tinha o objetivo de proibir o uso adulto e manter o uso medicinal; porém, na prática se tornava impossível a sua prescrição.
No ano de 1941 é retirada da farmacopeia americana. Porem, isso não impediu, que em 1942, quando qualquer ajuda era bem vinda no front da segunda guerra mundial, o departamento de agricultura americana incentiva o plantio de maconha no país, inclusive com um vídeo educativo chamado “Hemp for Victory” ou em português “cânhamo pela vitória”. O objetivo: a utilização das fibras para produção de fardas, cordas, mangueiras, solas de sapato e paraquedas.
A utilização dessa fibra, antes fornecida pelo Japão, era tão importante que o governo ainda dava um incentivo para os fazendeiros. Aqueles que plantassem estariam isentos e toda a família de serem convocados à guerra.
O governo Roosevelt sabia que essa medida poderia aumentar o uso adulto no país, porem os benefícios eram muito mais vantajosos. Isso não mudou a opinião sobre seu uso, e em 1961, a Organização das Nações Unidas (ONU) sugere ações coordenadas e universais contra as drogas, incluindo a Cannabis nesse contexto.
Mas nem tudo estava perdido…
Nessa mesma época, um grupo de pesquisadores na Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, chefiada pelo pesquisador Professor Doutor Raphael Mechoulam iniciava os testes com partes da planta Cannabis sativa para sua utilização medicinal. Os resultados eram tão interessantes que motivaram outros serviços pelo mundo a participarem de alguma forma nesses estudos.
Foi o caso do Brasil, quando em 1980 um estudo sobre a utilização de canabidiol como medicação adjunta ao tratamento de epilepsia refrataria, realizado pela Prof Dr. Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com colaboração do Prof Dr. Sanvito, da faculdade de medicina da Santa Casa de misericórdia de SP e do próprio Raphael Mechoulam, mostrava como o canabidiol, associado a medicação do paciente, auxiliava no controle das crises epilépticas.
Levou quase 14 anos após o estudo do Dr. Carlini, para que outra importante peça sobre o sistema endocanabinoide fosse elucidada, agora do grupo de pesquisa de St Louis, liderado pela Profa Dra. Allyn Howlett, que descobre um receptor exclusivo para canabinoides e, 2 anos após essa descoberta, o sistema é desvendado com a descoberta do primeiro endocanabinoide pelo grupo de Israel, a Anandamida.
A partir dai, um novo horizonte científico se abre, o seu uso volta a ter destaque em diversas partes do mundo, e novos estudam passam a ser produzidos. Falar que esse assunto é novo ou que falta evidencias para sua utilização, é negar uma historia milenar. Mas concordo que falta estudos sobre suas indicações. O que parece é que essa planta pode ser usada para muitas outras doenças ou na produção de produtos mais resistentes, e o principal, não agride nem sua saúde, nem o meio ambiente.
**Pedro Antônio Pierro Neto é formado em Medicina e Residência em Neurocirurgia Funcional. Se dedicou ao segmento de dor e ao método canabidiol, sendo um dos primeiros médicos a prescrever no Brasil. É diretor científico do portal Sechat; membro da Sociedade Brasileira para estudo da Dor (SBED) e Inter-Americana de Cirurgia de Coluna Minimamente Invasiva.
Fonte: Sechat